Arte e Revolução emaranhadas
Em 2003, Dan Brown lançou o livro “O Código Da Vinci”, contando as peripécias do simbologista Robert Langdon e da descoberta de um código que estaria incrustado na obra do renascentista Leonardo Da Vinci (1452-1519). Bom deixar claro que a trama policial e o suposto código são fruto da imaginação do autor. Da Vinci não precisa de uma conspiração milenar para ser o gigante que é. A narrativa ágil e envolvente, foi merecidamente um grande sucesso, tanto pela trama em si quanto pela aura de mistério que Leonardo imprimiu em sua obra.
Mas existe outro pintor, três séculos adiante no tempo, que realmente imprimiu em boa parte de sua obra um código, uma narrativa. Cada quadro forma um cristal que captura a essência do contexto histórico no qual o autor viveu durante a sua realização. Uma verdadeira aula de simbolismo, propaganda e história das mentalidades. Pode não ser tão misterioso quanto o livro de Brown, mas com certeza é tão instigante quanto.
O iluminista

Jacques-Louis David nasceu no dia 30 de agosto de 1748 em Paris. Filho do comerciante de ferro Louis-Maurice David e de Marie-Geneviève David, oriunda de uma família de artesãos. O pai morreu em um duelo de espadas, após falir o seu negócio. O pequeno David, então com 9 anos, foi entregue aos cuidados do tio materno, François Buron, que cuidou de sua educação dali em diante. Buron notou sua aptidão para o desenho e sonhava fazer do sobrinho um arquiteto como ele.
Estourou como diversos pintores entre 1764 e 1770. A partir de 1770, começou a se destacar com suas pinturas em estilo neoclássico com temas históricos e mitológicos, conseguindo alguns prêmios e tendo alguns fracassos na Academia de Artes de Paris. O elitismo deste ambiente irá marcá-lo.
Entre 1774 e 1780, David viajou pela Itália, estudando e produzindo. Em sua mala, cópias de escritos de Voltaire, Rousseau e Locke. Esta viagem influenciaria toda a sua obra, tanto na paleta de cores quanto na composição de cenas e temas. Quando retornou à Paris, conseguiu notoriedade como retratista de membros da nobreza da corte de Luís XVI.
Fama e Revolução
No ano do retornou à Paris, conclui a tela “Belisário pedindo esmola”. Belisário era o principal general do imperador Justiniano, que por inveja de seus rivais na corte bizantina, teria sido acusado de traição. O imperador, sendo lembrado que o povo amava mais o general do que a ele próprio, ordenou que Belisário fosse cegado e destituído de todas a suas propriedades e honras.

Interessante esta escolha de tema justamente no ano em que Luís XVI dificultou o acesso de oficiais de baixa patente do exército a títulos de nobreza. A pintura foi um sucesso de crítica e permitiu a seu ingresso na Academia Real de Pintura e Escultura. Mas David disse que o maior prêmio obtido por seu Belisário foi o elogio do enciclopedista Denis Diderot ao afirmar que “todos os dias eu o vejo e sempre acho que o vejo pela primeira vez”.
Em 1782, com a notoriedade conquistada, abriu seu estúdio. Teve Debret como um dos seus primeiros alunos. Anos mais tarde, este será o pintor mais renomado da Missão Francesa da corte de D. João VI e D. Pedro I no Brasil.
Em 1784 pintou “O Juramento dos Horácios”, retratando o momento em que os irmãos Horácios juraram defender a Monarquia Romana, ao enfrentar três irmãos Curiácios, representantes de Alba-Longa. A pintura remete à ideia de como o dever público, o sacrifício pessoal, o patriotismo e a defesa das convicções tomadas com consciência são valores superiores à própria segurança, ou seja, aos interesses individuais. Uma crítica ao individualismo em voga nos salões de Paris. A pintura obteve grande sucesso em sua exibição no salão da Academia.

Em 1787 foi a vez de “A morte de Sócrates” ser apresentada. Um verdadeiro petardo contra a censura, o obscurantismo e o autoritarismo. Mostra um Sócrates heroico, orientando seus discípulos até o último instante e um anacrônico Platão, que deveria ser jovem mas apresenta-se mais idoso que seu mestre, desconsolado aos pés de seu leito de morte.

“Os amores de Páris e Helena” foi pintado na ebulição da crise econômica antes da convocação dos Estados Gerais. Mostra a rainha de Esparta e o príncipe troiano entregues às delícias do amor inconsequente enquanto Ílion é devastada pela guerra. Uma nobreza desconectada do sofrimento do povo, causado justamente por sua irresponsabilidade.

Com os Estados Gerais já reunidos em 1789, David apresentou na academia “Os lictores trazem de volta a Brutus os corpos de seus filhos”, retratando o líder da rebelião que destronou o último rei de Roma, e portanto primeiro cônsul, Lucius Junius Brutus recebendo os corpos dos filhos, que ele mesmo condenou à morte, por conspirar contra a nascente República Romana. Toda a tensão dos Estados reunidos na expectativa do clero e da nobreza de abrirem mão dos próprios privilégios e sacrificarem-se pelo bem do país estão impressas em óleo sobre uma tela de 323 cm por 422cm.

Com o início da Revolução, David defendeu a extinção dos privilégios de classe e o fim da proibição de artistas não aprovados pela Academia em exporem em salões. Era um artista que lutava pela igualdade mesmo dentro de seu ofício.
Iniciou os estudos de sua obra mais ambiciosa em 1791, “Juramento do Jogo da Péla”, que retrataria todos os 630 deputados presentes no juramento da criação da Assembleia Constituinte. Por razões financeiras e políticas, a tela nunca foi finalizada (no Terror e depois Diretório, vários rostos na tela já eram persona non grata), mas o estudo é singular por dar a estética neoclássica, presente na obra de David desde os primeiros trabalhos, um tema histórico que ele mesmo testemunhou, conferindo-lhe o mesmo peso simbólico. Era o artista sedendo lugar ao político.

O Jacobino
David possuía ambições políticas desde a formação dos Estados Gerais, mas apenas em 1792 conseguiu eleger-se deputado na Convenção Nacional pelo partido Jacobino com apoio pessoal de Marat. Suas posições políticas se radicalizaram ainda mais, tendo apoiado a execução de Luís XVI e de Maria Antonieta. Também era amigo pessoal de Robespierre durante o Terror, sendo um dos jacobinos mais entusiasmados.
Seu entusiasmo aparece na organização do translado dos restos de Voltaire para o Panteão em 1791 e das cerimônias de Celebração do Ser Supremo de 1793 e 1794. É evidente a inspiração clássica dos eventos.

Deste período, sua obra mais significativa é o “Morte de Marat” de 1793. Ela mostra o jacobino dentro de sua banheira com um braço para fora ainda segurando a pena com que escrevia seus artigos e a cabeça pendida. É o retrato de uma bela morte com o rosto de Marat sereno e calmo (meio sorriso nos lábios), símbolo da República eterna. A paleta de cores e a posição do corpo são inspirados pelo “Sepultamento de Cristo” (1604) de Caravaggio. A Convenção ordenou que várias cópias da obra fossem espalhadas por toda a França.

Depois que Robespierre foi enviado à guilhotina, Davi foi preso e mudou a atitude. Durante sua prisão, ele escreveu muitas cartas, alegando sua inocência. Em uma delas, ele escreveu:
“Sou impedido de voltar ao meu ateliê, de onde nunca deveria ter saído. Acreditava que, ao aceitar esta posição honrosa, mas muito difícil de ocupar, a do legislador, que um coração justo basta, mas me faltava a segunda qualidade, a da compreensão “.
Na prisão realizou um auto retrato, onde aparece mais jovial do que realmente era aos 46 anos.

E após sair da cadeia, iniciou anos de estudo que desembocaram no “Rapto das Sabinas” (1799), onde vemos as mulheres sabinas, comandadas pela princesa Hersília implorarem que os reis Tátio, dos sabinos, e Rômulo, dos romanos, a interromperem a guerra entre eles em troca das sabinas seguirem para Roma. Um pedido de armistício em meio às lutas políticas conflagradas no meio da Revolução.

Napoleão Bonaparte
A admiração de David por Bonaparte começou ainda em 1796, quando o general ganhou notoriedade em suas primeiras vitórias. David enviou uma carta ao general, propondo um retrato quando a guerra acabasse, e em retribuição, Bonaparte o convidou para ficar sob sua proteção, o que David negou, por ainda estar trabalhando nas “Sabinas”. No final de 1797, no retorno triunfante de Bonaparte os dois homens se reuniram em uma recepção. Nessa ocasião, David ofereceu a Bonaparte a pintura de seu retrato , que permanece inacabada (1798). Já percebe-se os traços do grande herói que David irá criar.

Após o golpe do 18 de Brumário, David começou os estudos de um quadro que irá terminar apenas 1814: A batalha das Termópilas. Agora a França tinha um Leônidas, mas não apenas com 300 companheiros, mas com toda a nação lhe apoiando. Tempos gloriosos estavam por vir.

Entre 1800 e 1805, David fez 5 cópias de “Napoleão cruzando os Alpes”. Um dos retratos mais famosos do então primeiro cônsul, mostrava uma cena bastante idealizada da travessia dos Alpes. Nas pedras estão cravados os nomes de outras figuras históricas como Aníbal, César e Carlos Magno e o do próprio Bonaparte. Uma grande peça de propaganda.

Na “Coroação de Napoleão “ (1807), vemos o novo imperador, já investido do título, no momento em que coroa a esposa. O papa e demais membros da nobreza são meros expectadores da vitória de um homem que dobrou a História aos seus pés. Um novo Augusto para um novo Império.

A inspiração romana ficaria ainda mais nítida no “Distribuição dos estandartes” (1810), no qual os oficiais do exército juram lealdade ao imperador. A Antiguidade dos primeiros quadros invade a realidade retratada por David. Napoleão é herói, governante e deus dos novos tempos. Os símbolos do Ontem empunhados pelo homem do Amanhã. Imagens que explodem e terrificam.

Em 1812, David exaltou a imagem do o homem, o servidor, em “O Imperador Napoleão em seu estudo nas Tulherias”. O semblante cansado, o relógio marcando 4h13 de um lado e os restos da última vela do candelabro do outro. É quase manhã e Bonaparte não descansa. Não descansa para que os franceses possam ter paz e prosperidade. Um outro heroísmo, mas ainda é heroísmo.

Após Waterloo, David sentiu-se inseguro na França e pediu exílio à Roma, que lhe é negado. Conseguiu ir para Bruxelas, onde passou seus últimos dez anos de sua vida, morrendo em 29 de Dezembro 1825.
Evidentemente, sua obra não pode ser usada para entender a Revolução Francesa e o período Napoleônico. A Arte não necessariamente “retrata” uma realidade, mas sempre é um bom termômetro. No caso de David, não houve apenas a influência da realidade sobre sua arte. O artista foi partícipe da construção de sua realidade e deixou nesta marcas evidentes.


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