Recorte e crítica documental na Escócia jacobita
Uma das principais tarefas do historiador é investigar os rastros do passado e tentar reconstruir o mesmo para que sua análise seja feita e exposta. Uma das medidas ao se tomar sobre o passado é justamente o recorte: qual período estudar, em qual região, sob qual olhar, são perguntas ativadoras do fazer histórico. São perguntas como essas que nos movem rumo ao passado a fim de estudá-lo e entendê-lo sem perder os pés no presente. Recriar o passado, entretanto, é um ato impossível, afinal recriar uma realidade levaria a recriar todos os aspectos dessa, em um exercício que demandaria suprimir todo o presente em troca do passado. Quem nos apresenta de forma magistral esse dilema é o escritor argentino Jorge Luis Borges, um dos favoritos desse humilde empilhador de letras, em seu conto Funes, o Memorioso, leitura que deveria ser obrigatória para todo primeiro anista nas faculdades de história. Lá Borges nos apresenta um sujeito que depois de um acidente equestre que lhe ceifa os movimentos passa a ser dotado de uma memória prodigiosa, sendo capaz de relembrar de todo e qualquer detalhe que já lhe aconteceu, ao ponto que se recontasse um dia de sua vida demoraria toda a sua vida para fazê-lo. Borges nos apresenta aqui um dos aspectos fundamentais da história, ela é feita e escrita por escolhas, e da memória, cuja base é o esquecimento. Sem escolhas, sem história. Sem esquecimentos, sem memória.
Precisamos nos lembrar que o historiador baseia a suas escolhas, o seu recorte, e posteriormente o seu ofício, na realidade postas das fontes e documentos. O historiador é um amante da realidade, do lastro material da realidade. Não cabe ao historiador pensar em conjunturas possíveis e imaginadas, ele tem que se basear em conjunturas prováveis, no sentido duro da palavra. Para o historiador não cabe o “e se”, para o historiador cabe a anedota “se minha vó fosse uma bicicleta eu montava nela e saia pedalando”.

A cultura pop, a principal fonte de entretenimento para os amantes de história, e nos lembremos das palavras de Bloch sobre entretenimento e história, porém parece não entender essas premissas mais básicas. Sempre que há retratado um historiador ele é um depósito de todo o saber e todo o passado. Já comentei esse aspecto em relação ao seriado Timeless, você pode ler o texto aqui. Mas uma coisa muito interessante que a cultura pop é o questionamento sobre as fontes, a boa e velha crítica documental, que todo historiador precisa aprender a fazer.
Também se espera dos bons historiadores a capacidade de conseguir fazer a chamada crítica documental, ou seja, verificar a veracidade e autenticidade dos documentos, chamada de crítica interna do documento, e verificar o contexto sócio-político-cultural-temporal no qual aquele documento fora produzido, chamada de crítica externa do documento. Os bons historiadores então analisam se o documento na sua frente é verídico e qual a verdade que ele carrega. Porém apesar de todos os instrumentos em nossa disposição para fazer essa verificação precisamos nos lembrar que documentos podem, e são, falsificados e forjados, a própria ciência moderna da história se inaugura com Giambattista Vico e a Doação de Constantino e o evento descobrimento de sua falsidade enquanto documento histórico. Isso nos leva à uma pergunta: podemos confiar cegamente nas fontes documentais ao nosso dispor?

Essa parece ser umas das perguntas moventes da série de livros adaptadas para a televisão Outlander: A Viajante do Tempo, principalmente em seus dois primeiros volumes. Aqui temos uma personagem, a protagonista da história Claire Randall, que por um acaso cósmico/mágico consegue se transportar para o passado, para duzentos anos no passado. Na construção da trama, Claire é esposa de um historiador, que não é especialista naquele período em questão, e fora criada por um tio arqueólogo. Ou seja, é uma personagem que possui de certa forma contato com a ciência histórica mesmo que às margens e num nível um pouco mais acima da mera curiosidade e entretenimento. Claire volta no tempo conhecendo um pouco dos costumes, cultural, sociedade e política para o qual foi transportada, a Escócia das revoltas jacobitas, e se depara com uma personagem por ela conhecida via fontes documentais: um antepassado de seu esposo que fora descrito como um soldado inglês campeão da virtude e da honra. Porém lidando com ele de forma direta, real e concreta, Claire percebe que “Black” Jack Randall não parece nada com o que está escrito nos documentos compilados por seu marido: Randall é um sádico, um manipulador, alguém que é capaz das mais vis atrocidades simplesmente pelo seu bel prazer e satisfação.
Uma primeira leitura da trama, mais rápida e usual, pode chegar a seguinte conclusão: não podemos confiar nos documentos, e por conseguinte na própria história, afinal ela mente e manipula seus leitores e por consequência o presente. Esse é o tipo de leitura que leva a um tipo perigoso de discurso: o revisionismo negacionista histórico. Se a história mente é preciso revelar a verdade, e se mentirá é preciso negá-la e destruí-la. Tal viés ignora os fatores científicos, técnicos e metodológicos que a história possui enquanto campo do conhecimento e forma de investigação da realidade humana. O papel do historiador não é simplesmente destruir a mentira, mas sim evidenciar esse fato e nos questionar os por quês dessa mentira e combater as causas dessa manipulação e não suas consequências.

Outra leitura possível que se faz dessa trama, presente principalmente nos dois primeiros livros e duas primeiras temporadas da série, é o fato de que a história, tanto enquanto a compilação dos eventos pretéritos quanto a sua análise e interpretação, tem uma intencionalidade, ela como obra humana tem como uma de suas características justamente os aspectos subjetivos, tanto conscientes quanto inconscientes, do ser humano. A quem interessa retratar Black Jack como um campeão da virtude? Quem retratou a personagem dessa forma? É preciso nos lembrar que Claire vive e convive no passado com os rivais e adversários políticos do capitão Randall, ou seja, a sua visão também está contaminada. Aos olhos dos oficiais ingleses do século 18 Randall é um campeão da virtude e da moralidade por ser um destemido chefe militar contra um grupo que tenta derrubar a monarquia dita legítima e usurpra o trono. Fica claro com essa leitura que as fontes documentais possuem um recorte elas mesmas, que são frutos da mão humana e essa sempre acaba por escolher, mesmo que de forma subconsciente, o seu ponto de vista.
Outlander pode ser visto dessa forma dual, tanto um libelo de “não acredite na história pois ela é falsa e mentirosa”, o que pode dar ao salto lógico absurdo de que alienígenas construíram as pirâmides como postos de gasolina para a suas viagens cósmicas, como um alerta para o público de que a história é fruto do seu tempo e dos seus homens, e por conta disso é neutra e com intenções potentes, por isso quando abordamos o passado não podemos ser totalmente crédulos, como Claire fora no começo da trama, mas sim críticos, questionadores e moventes. Precisamos sempre olhar para o passado, para os seus rastros e buscar as respostas para algumas perguntas, sendo as principais delas: quando? Onde? Como? Quem? E por quê?

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