A América Latina e a Questão da Identidade

Breve balanço historiográfico sobre a questão da formação da identidade latino-americana

O tema da identidade nacional, e transnacional, sempre foi, e ainda é, caro e de suma importância para a historiografia latino-americana1, principalmente para os países de língua espanhola. Vários nomes da intelectualidade latino-americana, nos mais diversos vários campos do conhecimento, debruçam-se sobre a identidade latino-americana, sempre procurando estabelecer os limites dessa identidade: somos únicos? Somos uma mescla de culturas? Somos latino-americanos? Afinal, o que somos? Essas e muitas outras perguntas moveram vários pensadores e autores desde a época de Simon Bolívar e sua sanha libertadora; as respostas para algumas dessas perguntas entretanto ainda permanecem nebulosas e distantes de uma solução consensual; outras perguntas levantadas a partir dessas primeiras parecem um pouco mais próximas de serem equacionadas.

Por conta do nosso recorte histórico nos obrigar aliar à pergunta “quem são os latino-americanos?” à outra: quando realmente começa a América Latina? Seriam os povos nativos, que viviam nessas terras antes da Conquista latino-americanos? Um ameríndio boliviano se identifica primeiro como? Boliviano? Por sua etnia? Como latino-americano? Essas questões propedêuticas se apresentam assim como uma miríade de opiniões e teorias, basta nos lembrarmos que tanto em termos temporais quanto espaciais, e mais importante ainda, em termos políticos a América Latina, tal como nós conhecemos, é uma invenção do século XIX, tendo início, talvez, justamente com Simon Bolívar. Adotemos aqui o retorce historicizante da América Latina começando logo após a sua independência2. Isso por si só já levanta vastos questionamentos. Seria a elite criolla, de fato, latino-americana3? Ou seria ela espanhola? Realmente uma questão difícil de ser respondida. E não são apenas as elites que têm essa dúvida em seu âmago. Seriam os ameríndios nativos latino-americanos? E os negros? E os mestiços?

Comecemos a nos preocupar com a questão da identidade em si. Claro que nesse pequeno artigo não poderíamos alcançar todas as formações e consolidações de identidade de toda a América Latina, afinal isso seria uma empreitada hercúlea. Aqui pretendemos fazer um panorama sobre as identidades da dita América Hispânica, sempre respeitando as múltiplas singularidades e particularidades, quando estas se mostrarem essenciais e fundantes, de nosso continente.

Peguemos como ponto de partida de nossa reflexão o da invenção da identidade indígena. Como bem nos lembra o antropólogo Enrique Montalvo Ortega4, a chamada identidade indígena foi forjada ao longo do período colonial pelos colonizadores espanhóis de forma alheia aos povos nativos, afinal os próprios indígenas não se identificavam, ou não se viam como indígenas, a identidade desses povos era, antes de mais nada, antes étnica do que racial posto que os indivíduos se identificavam como pertencentes a uma etnia, tal como guarani, mapuche ou aimará, afinal a própria definição de indígena é europeia e não autóctone.

Essa identificação ilustra com maestria como nos foi legado a ideia de latinidade: um elemento natural, os povos pré-hispânicos, sendo identificados por um elemento alienígena de nosso continente, o colonizador espanhol. A questão da identidade indígena acabou por gerar vários conflitos com os europeus colonizadores, entre tantas podemos citar a Guerra de Castas5 e a guerra etnocida promovida pelo poder central argentino, principalmente portenho, para com os nativos do sul da Argentina6. Ou seja, podemos concluir que diferentemente do imaginário coletivo sul-americano, a aglutinação dos indígenas para o interior dessa mesma sociedade não foi conduzida de forma pacífica e passiva, mas sim através da ponta da espada e no balaço.

O que nos parece ficar evidente nos mais diversos estudos sobre o tema é a busca por uma integração, ainda que forçada dos ameríndios na sociedade então em gestação buscando assim a consolidação de um modelo de Estado nacional na América Latina; com a ressalva de que esses mesmos nativos deixassem suas identidades, ou pelo menos em parte, e se ocidentalizem, principalmente pela via da educação formal7.

Assim como a questão da identidade indígena, a identidade negra é um tema muito debatido entre os teóricos do tema da identidade latino-americana. Partindo do Brasil e de Cuba, Jorge Schwartz8 faz uma análise interessante da questão do negro na sociedade latino-americana entre os anos 20, as ditas “vanguardas artísticas”, e o final do século XIX, o “alvorecer da modernidade”. Semelhantemente à questão indígena, em um plano geral da América Latina, o artigo nos mostra que os negros também buscavam se firmar nessa sociedade, mas não através de uma identificação única, buscavam ser assimilados, após anos de tráfico negreiro e de escravatura, como membros dessa sociedade9, buscavam, de certa maneira, um branqueamento. Aqui não se trata de algum branqueamento racial, e sim de um branqueamento cultural10, uma aproximação da cultura afro-americana com a cultura branca-colonizadora. A identidade negra é tardia na América Latina, e quando ela surgiu, principalmente com o fim da escravidão, ela já se alinhou com setores progressistas da sociedade, e os negros passaram a lutar pela sua inclusão, não como de raça ou classe, mas como indivíduos em uma sociedade pluriétnica e plurirracial. Talvez essas palavras, do escritor Eljaves, possam melhor exemplificar o que até foi dito: “É necessário que nós pretos esqueçamos a cor, e tenhamos na mente que somos os produtores, os escravizados, os infelizes, enfim somos aqueles que trabalhamos para a grandeza da pátria; mas, em primeiro lugar, para o enriquecimento de meia dúzia de exploradores privilegiados: sejam eles brancos ou pretos.11. Esse trecho ilustra o quanto a identidade negra estava difícil de ser consolidada na sociedade estudada, esse trecho também nos revela que o mito da democracia racial, estudada por Florestan Fernandes, Gilberto Freyre e outros, é apenas um mito e nada mais que um mito amplamente difundido e repetido.

Já a identidade branca é um fator que não pretendia ser incluído na sociedade, afinal tal parcela da população — figurada em suas elites criollas — sempre esteve à frente, e dominando, do processo histórico latino-americano, seja ele colonial ou independente. Mas isso não a torna mais fácil de ser estudada, ou que seja um tema não pertinente da historiografia latino-americana. Basta lembrarmos que há muitas teorias sobre a especificidade dessa mesma elite: seria ela espanhola ou americana? Federalista ou unionista? Republicana ou monarquista? Leiga ou católica? Como podemos notar, são questões que não seriam nem um pouco fáceis de serem equacionadas12. Nessa mesma porção da população do nosso continente você encontra pessoas que gostariam que os laços coloniais se mantivessem, como aqueles que procuravam rompê-los; pessoas identificadas com a América, e outros que se julgavam espanhóis na América. Enfim, não buscamos esgotar o tema nesse pequeno artigo, buscamos, ratificando mais uma vez, elaborar um grande painel sobre um dos temas mais caros da historiografia, e da intelectualidade em geral, latino-americana.

Chegamos, talvez, ao ponto crucial da identidade latino-americana: os mestiços. Que por sinal somos todos, acreditar em pleno século XXI que somos racialmente puros, na América, é no mínimo ignorância ou puerilidade. Mestiços, sejam eles negros, brancos ou índios, são a grande parcela da população latino-americana, mas mesmo assim não fica claro quem são os mestiços da terra. Mestiços de raças, de culturas, de crenças, de ideologias, somos vários os mestiços da América Latina, e as suas identidades são de uma multiplicidade fenomenal. Temos, como mestiços latino-americanos, para exemplificarmos em termos literários, desde Martín Fierro até Macunaíma13, passando pelos personagens de Jorge Amado, Gabriel Garcia Márquez e Guimarães Rosa.

A própria mestiçagem parece ser a epígrafe da América Latina pós-independência, seja ela racial ou cultural. Afinal a própria América, não como continente geográfico, e sim como espaço histórico, só pode existir com a junção dessas três culturas: ameríndia, africana e europeia. Basta perceber em nossa cultura popular — como no samba e no tango onde elementos africanos e europeus se misturam gerando algo novo — para enxergar que a nossa identidade, como cidadãos latino-americanos, só pode existir graças à amálgama dessas três raças. E culturas.


Notas:

1 Basta nos lembrarmos que o Brasil sempre foi visto como agente do imperialismo na América, como fica claro nesse trecho de uma carta de Simon Bolívar: “Infelizmente, o Brasil limita-se com todos os nossos Estados; por conseguinte, tem muitas facilidades para nos fazer guerra com sucesso, como queria a Santa Aliança. De fato, estou convencido de será muito agradável a toda a aristocracia européia que o poder do príncipe do Brasil se estenda até destruir o germe da revolução.”.

2A posição dos moradores do hemisfério americano foi, durante séculos, meramente passiva; sua existência política era nula. Estávamos num grau ainda mais baixo que a servidão e, por isso, com maiores dificuldades para elevarmo-nos ao gozo da liberdade.”, trecho da Carta da Jamaica de Simon Bolívar.

3 É de fundamental importância lembrar que durante a Guerra da Independência essas mesmas elites se alinhavam muito mais à identificação espanhola do que à latino-americana. Cf. Belotto, M.L. e Corrêa, A.M.M. in Simon Bolívar.

4 Cf. ”Revueltas y movilizaciones campesinas en Yucatán: indios, peones y campesinos de la Guerra de Castas a la Revolución.in Revuelta, rebelión y revolución — La lucha rural en México del siglo XVI al siglo XX, volume 1, organizado por KATZ, Friedrich.

5 Cf. ORTEGA, Enrique Montalvo. Op.cit.

6 Cf. PASSETI, Gabriel in Indígenas e criollos: Política guerra e traição nas lutas no sul da Argentina (1852–1885).”.

7 Como bem nos lembrar Antonio Cornejo Polar em sua introdução ao romance de Clorinda Matto de Turner “Aves sin nido”.

8 Em seu artigo “Negrismo e negritudein Vanguardas Latino-americanas.

9 Cf. SCHWARTZ, Jorge. Op.cit.

10 Idem.

11 Citado em SCHWARTZ, Jorge. “Vanguardas latino-americanas”.

12 Como, aliás, são a maioria dos questionamentos levantados pela História.

13 Nas obras citadas de José Hernandez e Mário de Andrade, respectivamente, a questão da mestiçagem é muito bem ilustrada.


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