Uma Metáfora para Literatura Argentina

Resenhando Borges em “El Aleph”

“Existe esse Aleph no íntimo de uma pedra? Vi-o quando vi todas as coisas e o esqueci? Nossa mente é porosa para o esquecimento; eu mesmo estou falseando e perdendo, sob a trágica erosão dos anos, os traços de Beatriz.”

Jorge Luis Borges, O Aleph


Publicado em 1949, no livro homônimo, O Aleph se apresenta, para além do limite da dúvida, um dos melhores contos já escritos pelo escritor argentino Jorge Luis Borges em sua fase mais madura, temporalmente inserido dentro do contexto do dito realismo mágico. Nele, Borges, transborda a sua capacidade de criação de signos e significações, no caso “o lugar onde estão, sem se confundirem, todos os lugares do orbe, vistos de todos os ângulos1. Ou seja, o Aleph seria um único ponto onde se poderia ver todos os outros pontos do cosmo2. A carga de significação embutida nisso é enorme, ainda mais se levarmos em conta a latente erudição de Borges, que é ao mesmo tempo personagem e narrador do conto.

Este, basicamente, narra três estórias simultâneas: um amor idealizado de Borges pela recém-falecida Beatriz Elena Viterbo, em uma óbvia referência a Beatriz de Dante, a rivalidade amorosa e literária entre Borges e Carlos Argentino Daneri, poeta “menor” que é, de certa forma, ridicularizado por Borges ao longo do texto, e a descoberta do Aleph, que se encontra no porão da casa de Daneri, primo-irmão de Beatriz. Em termos estilísticos alia-se essas três frentes narrativas com fato de que o próprio conto se conta em si, como se ele estivesse sendo escrito à medida que vai sendo lido.

Para um autor, conforme Sergio Miceli, preocupado em não deixar marcas de sua vida pessoal em sua obra3, Borges nos surpreende em O aleph: nele o personagem, que também é Borges, se apresenta muito resignado com o mercado cultural de sua terra, como fica evidente, principalmente, no post scriptum do texto4, nele o nosso autor põe a nos dizer o que fora feito de Daneri, além da natureza do nome do Aleph e da sua veracidade histórica.

Ainda no campo da natureza dos nomes, parece que a escolha desses para os personagens não nos parece em nada ingênua nem acidental. Como já foi dito acima, Beatriz pode ser uma referência à dama que conduziu Dante do Purgatório até o Paraíso, substituindo assim Virgílio, na Divina Comédia. Mas cabe lembrar que Beatriz é Beatriz Elena. Elena, helenística, que morrera a pouco, no começo do conto: ela pode ser um signo para a cultura clássica, a arte culta, não diluída nos meios populares pelo mercado livresco. Carlos Argentino Daneri pode ser entendido como sendo símbolo para a geração de escritores argentinos das vanguardas da década de 1920 que tinham como uma das principais preocupações a questão da identidade criolla5. Essas mesmas vanguardas que Borges apoio, e militou, na aurora de sua carreira literária, porém não as tomou como dogmas programáticos e estilísticos. Borges, por causa de sua origem familiar e pela cegueira progressiva do pai, se tornou um homem do mundo, um escritor com preocupações mais universais6: através de Daneri, Borges acaba por criticar toda a sua geração que buscava fazer uma literatura panfletária. Evidentemente, sua obra há toda uma preocupação entre os nosotros, os criollos herdeiros da colonização espanhola, e os ellos, os imigrantes recém-chegados responsáveis pela diluição da identidade criolla7. Até isso está em Daneri: “Carlos Argentino é rosado, robusto, encanecido de traços finos. Exerce não sei que cargo numa biblioteca ilegível dos subúrbios do Sul; é autoritário, mas também ineficiente; aproveitava, até há bem pouco, as noites e as festas para não sair de casa. As duas gerações de distância, o ‘esse’ italiano e a abundante gesticulação sobrevivem nele.8.

Outra leitura que podemos fazer, além dessa crítica a sua geração, é que Daneri é, também, Borges; um outro lado dele. Daneri e Borges, o autor, tem traços em comum. Ambos foram diretores de biblioteca, por exemplo, a questão do estrangeirismo é outro traço comum: Daneri como um dos ellos, assim como Borges por ter passado quase toda a sua primeira mocidade fora da Argentina, na Suíça e Espanha.

Com isso, podemos concluir que a principal figura de linguagem a inundar O alph é justamente a metáfora, essa, por sinal, traço marcante da literatura borgeana como um todo. Podemos nos perguntar qual metáfora seria essa? As chaves para essa resposta são múltiplas: filosofia ocidental, alguma busca para o autoconhecimento, entre outras tantas. Optamos para uma leitura que a chave para essa metáfora — seria impreciso trocar metáfora por mistério, com toda a influência que Borges teve de Poe? — seja a própria literatura, mais precisamente a literatura argentina.

O conto, como observou Mariceia Benetti, é muito bem delimitado tanto no espaço quanto no tempo9. Sabemos exatamente que a estória se passa em Buenos Aires nas décadas de 1930 e 1940, não há espaço para dúvida para isso. Vemos no conto uma disputa de vaidade entre Daneri e Borges, e com Beatriz ao fundo, por causa de um poema daquele que pretende descrever todo o nosso planeta. Borges ouve a declamação e os comentários, chatíssimos na opinião do nosso personagem-narrador-escritor, de Daneri. Esse se debruçar em justificar seus versos e de colocar uma erudição extremante exagerada nele.

O episódio, ou mise-èn-scene se aprouver, se repete ano após ano no aniversário da morte de Beatriz, até que em um ano, 1941, a casa onde mora Daneri, e onde morava Beatriz, é ameaçada de demolição para a ampliação de uma nova confeitaria aberta há não muito tempo. Por causa desse pitoresco episódio, Daneri acaba por revelar que não poderia se desfazer da casa por possuir um Aleph no porão da casa.

Borges, assustado, o indaga sobre a natureza de tal artefato, Daneri se põe a explicar que ele é o ponto onde todos os outros pontos do universo podem ser vistos sem transparência nem sobreposições. Ai nos é revelado o grande signo do conto: o Aleph. Críticos se debruçam há anos na tentativa de interpretar a significação do Aleph. Optamos, vale a pena reiterar, pela interpretação dada ao artefato como uma metáfora para a própria literatura argentina.

Na própria descrição borgeana do Aleph podemos chegar a conclusão que estamos de fronte a uma metáfora para a literatura. Por quê? Por causa da universalidade pela ele é descrito, há de tudo dentro do Aleph, em vários locais do globo, nos lembremos do fato de Borges enxergar a sua vida como uma missão para a literatura intelectual10. Onde mais podemos encontrar, para além dos muros da literatura, toda essa multiplicidade, ou melhor, infinitude de sentidos e lugares? Podemos concluir, então, essa leitura do Aleph como metáfora para a literatura está correta; obviamente isso não impossibilita, invalida ou seja um impeditivo para qualquer outra interpretação que seja11.

Borges, em sua fase mais madura — inaugurada com o livro de ensaios de 1930 Evaristo Carriego — acabou por se distanciar das vanguardas literárias argentinas12, podemos perceber a ampla variação temática que ultrapassa as questões da argentinidade para temas mais universais, como a memória, a metafísica, a metáfora, etc. Há nele um forte ensejo pela universalização dos temas articulados e da forma escolhida: o ensaio, Borges, como se sabe, foi um prodigioso ensaísta, tal gênero literário possui maior trânsito transnacional, pois, diferentemente da poesia e prosa ficcional, na tradução o sentido não se esvai muito devido à natureza analítica de tal gênero, desde que, obviamente, seja feita uma tradução atenta e precisa.

Por essa universalização, Borges nos abre tão ressentido no conto estudado, autor universal — como nos lembra Mariceia Benetti, o único autor latino-americano com trânsito universal13 — ainda é pouco diluído em sua terra natal. Não obtinha o tão desejado prestigio como pensador em sua terra, e não somente em sua terra: Borges, um dos mais importantes e fundamentais escritores do século XX, nunca foi laureado com o Prêmio Nobel de Literatura. Pior para o Prêmio Nobel

Borges dirige a sua crítica ao mercado. Daneri, enquanto possui o Aleph, não obtém sucesso, mercadológico, como escritor. Assim que sua casa é demolida e perde-se o seu Aleph ele é premiado e reconhecido como escritor de sucesso. Ou seja, quando se afasta da alta literatura, o Aleph, ele surge como exemplo de sucesso literário. Borges ainda nos presenteia, no post scriptum, com a informação de que o Aleph da rua Garay é um falso Aleph, que o verdadeiro Aleph estaria dentro de uma coluna duma mesquita cairota do século VII, um apanágio à erudição formal.

Antes disso, Borges, nos diz que começa a perder a memória de Beatriz, que também pode ser lido como um símbolo à erudição devido à escolha do nome do personagem, explicado acima, e pelo fato dela ter morrido há pouco tempo, ou seja, a erudição clássica, o cânone literário anterior, fora recentemente abandonado e substituído por um novo cânone orientado pelas luzes dos vanguardistas finisseculares. As metáforas abundam-se e suas leituras multiplicam-se ao longo de todo o texto.

Assim não pretendemos esgotar, o que é impossível, essa obra-prima da literatura universal que é El Aleph de Jorge Luis Borges, essa é apenas uma leitura possível dos múltiplos significados que emanam desse tão grandioso texto. Ler Borges pode ser uma tarefa extremamente dificultosa devido a extrema erudição esperada pelo autor de seu leitor, porém se aceitarmos as regras de seu jogo e, o mais importante, nos permitir jogar o seu jogo, sua leitura abre-se como muito prazerosa e satisfatória tanto para aqueles que são, como por aqueles que não são, atormentados pelo figura fantasmagórica do ponto singular onde se reflete todos os pontos, inclusive ele próprio, do universo.


BIBLIOGRAFIA:

BENETTI, Mariceia. “Uma análise semiótica, a partir do conceito de leitor-modelo de Umberto Eco, para verificar estratégias de leituras apresentadas por Borges em El Aleph”, Caesura, n. 25, Canoas, pp. 89–95, 2004.

BORGES, Jorge Luis. “O Aleph”. In Obras Completas de Jorge Luis Borges, volume I. São Paulo: Globo, 1998. pp. 686–698.

MICELI, Sergio. “Jorge Luis Borges: História social de um escritor nato”, Novos Estudos, n. 77, São Paulo, pp. 155–182, 2007.

PINTO, Julio Pimentel. “As ruas de Borges e de seus contemporâneos”.História, São Paulo, v. 22, n. 2, pp. 121–132, 2003.


NOTAS:

1 BORGES, Jorge Luis. O Aleph, in Obras Completas de Jorge Luis Borges, vol. 01. São Paulo: Globo, 1998. pp. 693.

2 Há alguns estudos que apontam para uma leitura cabalística do Aleph, pois, como se sabe, o Aleph é, também, a primeira letra do alfabeto hebraico e possui vários sentidos cabalísticos embutidos nele, essa resenha não seguirá por essa vereda.

3 Cf. o artigo Jorge Luis Borges: História Social de Um Escritor Nato, Novos Estudos, n. 77, S. Paulo, 2007.

4 Isso fica muito bem ilustrado no primeiro parágrafo deste pós-escrito, leiamos esse parágrafo: “Seis meses após a demolição do imóvel da rua Garay, a Editora Procusto não se deixou amedrontar pela extensão do considerável poema e lançou no mercado uma seleção de “trechos argentinos”. Vale a pene repetir o ocorrido; Carlos Argentino Daneri recebeu o Segundo Prêmio Nacional de Literatura. O primeiro foi outorgado ao doutor Aita; o terceiro ao doutor Mario Bonfanti; inacreditavelmente, minha obra Los Naipes Del Tahurnão conseguiu um único voto. Uma vez mais, triunfaram a incompreensão e a inveja! Já faz muito tempo que não consigo ver Daneri; os jornais dizem que em breve nos dará outro volume. Sua afortunada pena (não mais perturbada pelo Aleph) consagrou-se a versificar os epítomes do doutor Acevedo Diaz.”. BORGES, op. cit. pp. 697.

5Cabe explicar aqui que a palavra castelhana criolla, assim como a sua contraparte em francês, creole, se referem ao que é nativo das Américas, na América Espanhola essa palavra basicamente designa todos os europeus imigrantes para as colônias e sua progênese, já na América Francesa esse significado se transforma para os escravizados libertos buscando uma identidade própria, podendo assumir, dependendo do emissor, tom racista e preconceituoso, assim como na contraparte em português criolo, concomitantemente uma palavra difamatória para afrobrasileiros e, em algumas regiões do Brasil, designa aquilo que nos é próprio e nativo, como na expressão cavalo criolo.

6 Cf. MICELI, op. cit.

7 Idem.

8 BORGES, op. cit. pp. 687.

9 Cf. Uma Análise Semiótica, A Partir do Conceito de Leitor-Modelo de Umberto Eco, Para Verificar As Estratégias de Leituras Apresentadas Por Borges Em El Aleph, Caesura, n. 25, Canoas, 2004.

10 Influenciado, em muito, pelo pai como nos lembra o professor Miceli no artigo já citado.

11 Não se trata aqui de uma busca de um trabalho definitivo, o que é impróprio para o oficio do historiador.

12 Em um artigo, presente na bibliografia desse ensaio, onde estuda o poema As Ruas, do seu livro de estréia como escritor, Fervor de Buenos Aires, o professor Julio Pimentel Pinto nos mostra que Borges desde muito cedo não aceita como dogma literário as propostas vanguardistas. No poema estudado pelo professor Pimentel Pinto, Borges se afasta da exaltação da cidade moderna, como fizeram outros escritores da sua geração, como Girondo por exemplo, e sim busca a velha Buenos Aires oculta nos novos rumos que a modernidade lhe trouxeram. Podemos perceber, assim, o grande paradoxo borgeano: uma extrema erudição formal aliada com um forte anseio pelo novo.

13 Cf. BENETTI. Op. cit.


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