Reign: Anacronismo, Indústria Cultural e Memória

Ou como a representação histórica pode ser esvaziada se não for devidamente instrumentalizada

Quando a mídia de massa, ou no glossário pós-moderno, a indústria cultural, cria algum objeto de consuma ela sempre procura por um público-alvo, uma fatia da audiência em que o seu produto vai ser recebido, aceito, consumido e, preferencialmente, reproduzido. Essa é uma regra normal para filmes, livros, peças, discos, programas de televisão: são produtos falando com um determinado público, uma questão de meio e mensagem, de comunicação e recepção. Esse tipo de formulação não recente, nada mais coerente em arte e cultura buscar se ajustar à sua recepção, entretanto com a massificação dos meios de comunicação e a globalização cultural essa mecânica se acentuou e se agravou ainda mais. Para exemplificar essa mecânica a distribuição de filmes comerciais estadunidenses não há: com a elevação da China como grande consumidor desse tipo de produto, os estúdios passaram a se moldar ao gosto chinês e inserir gradativamente aspectos daquela cultura em seus produtos. Essa dinâmica, infelizmente, acaba por se impor ante a liberdade criativa e a inventividade daqueles envolvidos na concepção e produção de tais obras.

Isto posto cabe a observação de que eu, homem de meia-idade e historiador, definitivamente não sou o público-alvo do objeto a ser criticado por esse pequeno artigo: o seriado televisivo Reign, programa que narra livremente a vida e as aventuras de Mary Stuart, rainha de França e Escócia, além de pretendente ao trono inglês. Reign é claramente um produto direcionado para mulheres adolescentes, a abordagem, tacitamente sexista, idealiza o amor romântico, há um forte apelo à conversas de rabo e pequenas tramoias, uma fetichização da sociedade de cortes, observem como as roupas, festas e comidas são tratadas em sua representação, revelando uma ideia burguesa de como as jovens mulheres são ou deveriam ser.

Feita essa pequena introdução fica claro o meu estranhamento ao acompanhar tal seriado, comecei a assisti-lo por tratar de um assunto muito apreciado por mim: a monarquia inglesa após a Guerra das Duas Rosas. O esse tempo do de trono de Eduardo II é apresentado como um pastiche folhetinesco com eventos históricos pincelados e adaptados livremente para dar algum recheio à uma trama forçosamente romântica, no pior sentido no qual essa palavra pode se apresentar.

Há diversos problemas em Reign, o que mais irrita, de longe, é o mau uso da história e da memória. Não que se possa esperar qualquer tipo de rigor em um produto cultural proposto a ser um folhetim adolescente fantasiando as relações afetivas e políticas na sociedade de cortes do começo da Idade Moderna.

Um dos grande problemas inclusive é justamente não explorar como nas cortes europeias as relações afetivas eram dominadas pelos aspectos políticos, como se sabe o casamento, a suposta materialização da afetividade em forma de instituição, nada mais era do um instrumento de poder, uma ferramenta para alianças serem forjadas e coroas, ou famílias nobres, fossem unificadas. Desde o começo do seriado, desde seus primeiros episódios, Mary Stuart e Francis I aparecem como dois jovens apaixonados vivendo um amor romântico típico da literatura europeia do século XIX.

Para olhos mais atentos com a história das afetividades e das mentalidades chega a ser difícil não segurar o riso e o deboche. Essa representação consegue elevar à enésima potência o conceito de anacronismo, pois desloca a nossa visada sobre o que seria o amor romântico do XIX para meados do XVI.

Aliás se há uma palavra capaz de circunscrever uma definição para Reign é anacronismo. Já tratamos desse conceito em um vídeo no canal, você pode assisti-lo aqui, mas não custa nada relembrar do que se trata tal conceito: anacronismo pode ter dois significados, uma falha de cronologia, ou seja, atribuir uma data para algo de forma errônea; ou tratar de assuntos do passado com olhares que não lhe pertencem. Por exemplo, e aqui vou usar do absurdo para ilustrar melhor esse conceito, você representar Platão segurando um iPhone é tão anacrônico como representar Mary Stuart como uma jovenzinha apaixonada.

Há claramente uma ignorância história por parte dos produtores desse programa televisivo, tanto do aspecto de um não conhecimento factual e estrutural sobre a Europa ocidental do período, como uma opção de simplesmente não se levar em conta esses aspectos. Isso fica claro nas roupas e ornamentos utilizados ao longo dos episódios, reparem atentamente nos vestidos, principalmente aqueles utilizados pelas personagens Greer e Mary Stuart: são claramente designs de agora, do tempo presente, podiam estar desfilando em qualquer passarela de qualquer semana de moda contemporânea. Reparem também nas armas e armaduras envergadas pelos personagens masculinos, principalmente Francis e Bash, que apresentam características de armas e armaduras espanholas do XIII e XIV.

Reign escorre anacronismo, tanto em suas representações materiais como imateriais, e isso é apenas uma lástima, pois o período elizabetano é dos mais ricos em simbolismo, memória e reminiscência que a cultura dita popular poderia se apropriar e divulgar. Essas representações equivocadas servem apenas como afastamento de um público mais maduro e sério para tais produtos. Reign poderia ser perfeitamente uma série aventuresca ou romântica, nada contra esses aspectos e abordagens, desde que respeitasse a quem estão se propondo a retratar, mas seu estofo estaria mais para um thriller político aos moldes de House of Cards, por exemplo. Por´me, como dito acima, definitivamente não sou o público para esse tipo de produto, o que me faz lamentar muito como esse público-alvo vai construir sua imagem e memória sobre Mary Stuart e o período elizabetano.


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