Timeless, Viagem no Tempo e o Papel Social do Historiador

Uma breve reflexão sobre como a cultura pop retrata o papel social do historiador

Por esses dias eu comecei a existir o seriado de sci-fi Timeless, uma série televisiva com um enredo bem simplório, material bem derivativo das grandes obras do gênero que tratam do tema. Há um leve sabor de De Volta para o Futuro, Viagem no Tempo e tantas outras obras que tratam da potencial viagem no tempo. O enredo, como disse, é bem simples: um ex-agente da NSA (National Security Agency) se rebela contra o establishment depois que sua família é assassinada e resolve combater o governo dos EUA, que fora tomado por uma cabala secreta que opera nas sombras os destinos estadunidenses, e para tal luta ele resolve viajar no tempo atrás de episódios chaves da história dos EUA com o intuito de mudar a história e assim ter a sua família de volta, para combate-lo o FBI, aliado à uma grande corporação, numa alusão óbvia à Apple e à SpaceX, monta um time formado por um funcionário da corporação servindo de piloto, um soldado da Delta Force, grupo de elite do exército, e uma historiadora, que viajam no tempo caçando o “terrorista” que resolveu acabar com o governo norte-americano.

Ah, faltou um pequeno detalhe: o ex-agente da NSA viaja no tempo em uma máquina construída pela corporação e guiado pelo diário da historiadora, que supostamente o entregou no tempo futuro, mesmo sem explicar muito bem como ocorreu supostamente essa troca. Como eu disse, um enredo bem simples, sem muita elucubração das ideias sobre viagem no tempo e suas implicações e suas potencialidades, mas ainda assim um bom entretenimento fútil.

Pôster da segunda temporada do seriado Timeless

Eu poderia escrever justamente sobre as potencialidades e implicações sobre a viagem no tempo ao passado poderiam ter no campo da história, acredito que as grandes mudanças se dariam não por um grande episódio, como o assassinato de Lincoln, ou o impedimento da Revolução Americana, acredito que se daria em pequenos episódios, em pequenas mudanças, essas sim poderiam trazer grandes mudanças ao ponto de se mudar o tecido da realidade.

Esse texto se propõe a criticar como o historiador é, sempre, retratado pela cultura pop e pelo campo do entretenimento. A escolha do seriado citado é meramente pontual, poderia ser com qualquer outra obra retratando um historiador, a representação, ainda mais as hollywoodianas, é sempre a mesma: nós somos uma espécie de senhores de douto saber sobre toda a realidade pretérita que já existiu, sabemos datas, nomes, acontecimentos, casualidades, consequências, isso em todos os aspectos do passado e em toda a nossa geografia. Basicamente somos sempre retratados como pessoas que sabem tudo, de tudo, em tudo, o que, convenhamos, é uma grande ingenuidade e uma visão antiquada sobre o que se trata a história, a ciência, e não o sentido de acúmulo de passados, ou a narrativa do passado.


Historiadores sempre raciocinam por recorte, primeiro um recorte temporal, depois um recorte temático, depois um recorte de episódio ou personagem ou estrutura, depois um recorte metodológico, para então termos um objeto de estudo no qual vamos debruçar boa parte da nossa vida profissional.

Atriz Abigail Spencer no papel de Lucy Preston, a historiadora responsável por ser a “guardiã do passado” do seriado Timeless

Ou seja, essa vista de que sabemos tudo é pra lá de equivocada, não é raro a gente encontrar historiadores profissionais de determinada área e campo que desconhecem acontecimentos basais de outras áreas e campos os quais não dominam, utilizando-me de exemplo: sou um medievalista, eu me preocupo com questões culturais e sociais do medievo, não por isso eu sei toda a linhagem dos reis Capetos de memória, pedir isso seria uma insanidade e um disparate no ponto de vista conceitual, que ser humano comum poderia ter de cabeça todos os conhecimentos produzidos pela humanidade? Há tempos em que o historiador deixou de se propor a tal papel, hoje somos muito mais críticos e analíticos do que narradores e comentaristas, porém essa visão de historiador ainda prevalece na cultura pop e no entretenimento como um todo.

A razão para isso pode ser apontada por dois fatores, uma de audiência e outra de criadores de conteúdo, vamos nos preocupar primeiro com a audiência consumidora desse tipo de obra. Cícero, filósofo romano da Antiguidade Tardia, cunhou uma frase definidora para o nosso entendimento da história: “historia magistra vitae”, do latim “história mestra da vida”, tal sentença pode ser interpretada como se a história deveria servir de régua moral, ética, política, social, cultural para o tempo presente, ou seja, nós, coabitantes do tempo presente, deveríamos olhar para os exemplos, de preferência aqueles que são cobertos de honra e glória, do tempo passado e nos espelhar neles e assim tentar replicar no nosso tempo essas experiências. Tal intuito entretanto se esquece de alguns pontos que são fundamentais para o entendimento do passado: ele, mesmo se esforçando muito, nunca está lá pronto para se resgatado, admirado e recriado, felizmente não se faz mais história com esse tipo de pensamento, nós, historiadores, temos plena consciência do papel de intermediadores implícito no nosso ofício, é função do historiador retornar ao passado com um olhar crítico e agudo, não ficar apenas com um papel de artífice de castelos vaporoso evanescentes, como são as figuras históricas postas como padrões e regras de conduta e exemplos. Infelizmente a historiografia, ainda mais a boa historiografia, não possui vasta penetração na cultura dita popular, se olharmos para os produtos culturais produzidos a partir de uma perspectiva dita histórica sempre, ou quase sempre, encontraremos a reprodução do lugar comum e desse espírito de história como régua da vida, boa parte dos produtos culturais ditos históricos perde uma boa oportunidade de dialogar presente-passado de forma crítica, tratando de temas da atualidade porém usando o passado como pano de fundo para esse desenvolvimento.

Sendo dessa forma o entendimento do espírito popular sobre a história, não seria diferente o entendimento do ofício e do papel social exercidos pelo historiador: ser um depósito, um manancial, de saberes empilhados, massificados e acríticos. E infelizmente é dessa forma que somos vistos e lembrados, somos aqueles que devem saber, de pronto, todos os episódios, datas, nomes, personagens, estruturas e singularidades do tempo passado, uma espécie de guardiões e narradores do pretérito para o presente, afastando todo e qualquer espírito crítico e analítico. Construímos, de acordo com o senso comum e a cultura dita popular, um vaso chinês parnasiano: belo, requintado, rigoroso, mas vazio de sentimentos, emoções ou reflexões.

Ator Goran Visnjic vivendo Garcia Flynn, o vilão de Timeless

Esse entendimento todavia serve para roteiristas e escritores como um todo para um papel nessas narrativas postas: quando se utiliza esse recurso como uma forma de justificar a quest em questão. Veja, no seriado aqui em questão sem o papel narrativo empenhado pela personagem historiadora a trama simplesmente não se desenrolaria, afinal há uma preocupação com o tecido da realidade se esfacelará ou não caso algum paradigma do passado seja alterado ou não, ou seja, há uma preocupação em preservação do passado como uma metáfora para a preservação do status quo vigente, veja o personagem que tenta lutar contra o governo americano é justamente o mesmo que tenta lutar para alterar o passado. Pensando dessa forma vemos o quão reacionária é o olhar do senso sobre o papel social e o ofício do historiador, o que está longe de encontrar qualquer lastro com a realidade material posta do ofício.


Como encerramento cabe ressaltar se essas duas visões se impõe pelo e para o senso comum há apenas um responsável a ser apontado: o próprio historiador, como dito acima, as boas historiográficas atinge uma parcela muito pequena da população, talvez apenas um círculo curto de pessoas cultivadas cuja a preocupação do entendimento da estrutura do presente em comparação com seu processo criador é mínima, isso se dá principalmente pelo tipo de texto produzido pela historiografia e pelos historiadores. Textos em sua maioria herméticos, complexos em estrutura, conteúdo e vocabulário, elitistas por definição, afastando assim uma ampla divulgação do conhecimento histórico, não a toa pululam nas redes sociais, solenemente ignoradas pela maioria dos colegas, os mais absurdos debates sobre história, fora o lodo das teorias conspiratórias. É preciso ocuparmos o espaço da divulgação científica, de nos mobilizarmos pela luta da regulamentação profissional, precisamos ocupar um vácuo criado por uma linguagem e uma tribuna tão elitista e excludente como o da academia, é preciso ocupar as redes sociais, fazer publicações com rigor científico, não podemos cair na armadilha de certas publicações duvidosas que tratam o passado apenas com curiosidade e sensacionalismo, porém com uma linguagem mais acessível e palatável para as pessoas de fora da academia. Claro, é preciso ter o espaço, a tribuna, que é a academia, querer apenas destruir essa instituição seria um revés e um anti-intelectualismo atroz, precisamos é ser, na medida do possível e do chamamento, ser duais: precisamos ser acadêmicos e populares concomitantemente, da mesma fora que o historiador tem um olho no passado e outro no presente.


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