Somos Filhos e Filhas do Século XIX

Os usos da História pelos nacionalismos

As raízes da história são profundas, ao certo não sabemos quando e onde começamos a guardar registros dos nossos eventos para depois rememorarmos e analisarmos tais registros. No Ocidente cabe a dois gregos, Heródoto e Tucídides, a pecha de desbravadores e iniciadores daquilo que viria a se tornar a ciência histórica.

A ciência histórica possui diversos marcos e balizas no seu desenvolvimento e na sua história, Cícero cunhou uma das mais famosas frases sobre a disciplina – Historia magistra vitae, ou seja, a história é a mestra da vida – os cronistas medievais também foram importantes na elaboração dos registros – podemos citar duas obras monumentais do período: a Alexíada, crônica patrocinada pela dinastia bizantina dos Comneno – aliás essa obra foi escrita por Ana Comnena, filha do basileu Aleixo I Comneno, que narra os eventos da Primeira Cruzada, e a Historia Regum Britanniae, narrativa escrita por Godofredo de Monmouth que narra a história dos reis bretões.

Foto de manuscrito do século XII da Alexíada

Mais adiante temos com Giambattista Vico e sua Scienza Nuova o começo da sistematização mais científica desses desses registros e o que mais importante no ofício as interpretações a partir da leitura desses registros. Herder, Voltaire e Kant também contribuíram para o estabelecimento de uma escrita da história científica baseada na razão. Porém é em finais do século XVII com o positivismo que temos o estabelecimento de uma história científica baseada em uma metodologia. Nomes como Edmund Burke e Fustel de Coulanges, a esse cabe a pecha de ser o primeiro a produzir um livro científico da nossa disciplina, A Cidade Antiga, contribuíram na consolidação da história como uma disciplina científica separada da literatura e de outras ciências humanas, como a sociologia e a economia.

O positivismo vai ser extremamente criticado no século XIX – talvez o mais confuso e adorável século da história – por conta de sua abordagem dita fria e intelectualizada. Acusavam os velhos positivistas de serem casualistas e assim esticarem os domínios da disciplina. A principal crítica à historiografia positivista – e talvez a mais importante – é que ela definia a história apenas como a leitura calma e distante dos documentos oficiais da diplomacia estatal. Ou seja, cabiam apenas as narrativas dos grandes nomes e grandes feitos.

Fustel de Coulanges, um dos grandes nomes da historiografia francesa positivista

Surgem então os historiadores românticos e nacionalistas, eles vão trazer para a história da história a análise não apenas dos documentos oficiais na busca dos grandes fatos e feitos, eles buscam algo que é essencial: o processo de formação dos países e nações do mundo. Ou seja, são os nacionalistas e românticos os primeiros historiadores a colocarem o pé na historiografia moderna baseada mais em processos e na duração do que no evento e na narrativa.

Há um porém entretanto: ao buscarem as origens das nações do tempo presente esses historiadores acabaram por buscar criar uma narrativa que justificasse o presente. O nome disso já sabemos: anacronismo. Os historiadores do XIX voltam ao passado, buscam as origens, em sua maioria mitificadas, e então partem no processo histórico desse mito. Então Clóvis se torna o primeiro francês, Armínio o primeiro alemão, a Reconquista se torna a chave para o entendimento da história da Península Ibérica, etc. Esse tipo de narrativo – de origens e nascimentos – serve mais para justificar as nações no XIX do que a sua formação histórica em si. Como podemos apontar o primeiro francês? Baseado no que? Na identidade nacional? Na língua? Na cultura? Na somatória desses fatores? Se sim isso não acaba por justificar os estigmas de minorias dentro de um determinado território? E o que é pior: atribui caráter humano às sociedades, então os judeus seriam gananciosos por conta de sua história, os espanhóis e portugueses teriam o sangue quente por sua mistura com os árabes, entre outros. Sabemos como o imperialismo e o colonialismo se utilizaram dessas justificativas para poder levar “civilização” onde havia “bárbarie”.

Jules Michelet, um dos grandes nomes da historiografia francesa romântica

E agora no século XXI depois de passarmos no último decênio por mudanças metodológicas e temáticas profundas, principalmente pelo advento da Escola dos Annales e da Nova História, será que estamos libertos desse tipo de história? Basta abrir um livro didático, um romance histórico ou uma obra de divulgação para percebermos que ainda somos sequestrados por essa história que busca o nacionalismo mítico baseado no cientificismo e na grande narrativa. Ainda exaltamos genocidas como heróis e desbravadores e ignoramos o caráter racista e machista da colonização portuguesa na formação do nosso país. Isso apenas para ficarmos com o que conhecemos.

Urge deixarmos para trás essa história do século XIX, urge tornar a história a busca pela verdade dos seus processos e deixarmos a casa de nossos pais para trás. E esse talvez seja um dos maiores, se não o maior desafio, que nós historiadores, professores e divulgadores temos a enfrentar quando tratamos de história pública e de educação.


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