Redação e pesquisas: Vicente Detoni e Pablo Bráulio*
LOROTA – Nenhuma fonte histórica e nenhuma das pesquisas realizadas por historiadores e historiadoras atestam que Leopoldina tenha assinado um decreto de independência do Brasil. Ao que tudo indica, esse documento não existe nos arquivos. O que parece haver é uma ata de uma importante reunião ocorrida no dia 2 de setembro, testemunhos recolhidos por cronistas e cartas que nos oferecem indícios sobre os acontecimentos de 1822. Mas nada relativo a um decreto assinado pela então princesa. Embora haja muito debate sobre vários episódios determinantes para o processo de separação entre Brasil e Portugal, a data de 7 de setembro, consagrada na memória nacional, ainda é considerada o principal marco da independência e do início do Império do Brasil. Essa conclusão não tira da regência de Leopoldina sua enorme relevância, nem o protagonismo desempenhado pela jovem princesa naquela conjuntura política. Se quiser saber mais sobre como a equipe do projeto DETECTA chegou a esta conclusão, leia a postagem na íntegra logo abaixo.
O que detectamos
Há tempos que a equipe do projeto DETECTA tem se deparado com a narrativa de que Maria Leopoldina de Habsburgo (1797-1826) teria assinado o decreto de separação entre Brasil e Portugal cinco dias antes de dom Pedro proclamar a independência às margens do Ipiranga. Segundo versões dessa narrativa, o suposto ato de Leopoldina teria sido, além de anterior, mais relevante que o do marido. Assim, dom Pedro teria levado a fama, literalmente, no grito.

Recentemente, uma leitora do projeto DETECTA entrou em contato com nossa equipe para sugerir a verificação dessa narrativa. De acordo com a leitora, essa ideia estaria muito difundida no presente, aparecendo inclusive em livros didáticos de História. No entanto, ainda segundo a leitora, não há menção a esse decreto na mais recente biografia de Leopoldina, escrita por Paulo Rezzutti. Nessa obra, publicada em 2017, o escritor menciona apenas o fato de Leopoldina ter presidido uma importante sessão do Conselho de Estado no dia 2 de setembro.
A leitora ainda ressaltou a importância de se destacar a participação de Leopoldina no processo de independência do Brasil, mas demonstrou preocupação quanto à veracidade das informações, posicionamento com o qual nossa equipe está em pleno acordo. Assim, nosso agente especial MarcBot entrou em ação para coordenar esta checagem para a série “Narrativas Monarquistas”, cujos textos anteriores serão republicados em breve aqui no CLIO.
Uma rápida pesquisa pelos meios digitais revelou que, nos últimos dez anos, houve um volume considerável de postagens destacando a assinatura do “decreto da independência” por Leopoldina. Não conseguimos identificar exatamente como essa história começou, mas as primeiras postagens mencionando o tal decreto nas redes sociais parecem ter surgido em 2010 (veja os prints abaixo).



Foi em 7 de setembro do mesmo ano que a jornalista Monica Buonfiglio publicou uma matéria no portal Terra afirmando que “no dia 2 de setembro [Leopoldina] decretou a libertação do país cinco dias antes da sua proclamação”. Segundo a jornalista, essa história teria se tornado conhecida em 1960, “quando um leiloeiro de Munique, na Alemanha, anunciou a venda de oito mil cartas de Maria Luísa, irmã de D. Leopoldina (duzentas e quarenta cartas da nossa Imperatriz)”.
A propagação dessa narrativa nos últimos meses de 2010 coincide com as eleições daquele ano, o que levou a equipe do projeto DETECTA a suspeitar que essa memória tenha sido estimulada pela disputa presidencial, já que Dilma Rousseff era a favorita e viria a se tornar a primeira mulher no cargo de presidente do Brasil.
Naquele contexto, a narrativa chamava atenção para o fato de que, antes de Dilma, outras mulheres já haviam governado o país, sendo Leopoldina, na condição de regente, a primeira delas. Talvez no afã de destacar o pioneirismo da jovem princesa e partindo de uma leitura apressada dos textos historiográficos, a ideia de que Leopoldina “decretou a independência” se tornou muito atraente e foi tomando formas cada vez mais convincentes.
A história do suposto decreto não ficou restrita às redes sociais e à matéria no portal Terra. Continuou circulando em outros canais de informação, como a revista IstoÉ. Em matéria de 2015 no site da revista, a jornalista Helena Borges chegou a afirmar que um quadro de Georgina de Albuquerque “retrata Leopoldina assinando o decreto”.

Na verdade, a pintura buscou representar o momento em que a então princesa presidia o Conselho de Estado, tendo em mãos alguns papeis, muito provavelmente uma referência aos despachos das Cortes de Lisboa que haviam chegado ao Rio de Janeiro durante a ausência de dom Pedro e ameaçavam o governo no Brasil, sendo este o estopim para a Independência. Essa imagem, contudo, é frequentemente usada para dar um suporte visual à narrativa de que Leopoldina assinou um documento que separava o Brasil de Portugal.
Ao longo da última década, o site History fez coro à história do decreto e até a página da Biblioteca Nacional Digital replicou essa informação. Como se não bastasse, inúmeros portais educacionais também reforçaram essa narrativa, como os sites Brasil Escola, Ensinar História e Pesquisa Escolar.
Essa história foi tão longe que o suposto decreto tem sido utilizado para fundamentar um Projeto de Lei no Senado Federal visando inscrever o nome de Leopoldina no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. Apresentado em fevereiro de 2020 pelo senador Jorge Kajuru (Cidadania), o PL nº 127/2020 diz que a princesa “assinou o decreto da Independência, declarando o Brasil separado de Portugal”. Em março, o texto foi aprovado pela Comissão de Educação, Cultura e Esporte. O parecer da relatora, senadora Mailza Gomes (PP), exalta a Independência do Brasil como um movimento contrarrevolucionário, afirmando que a atuação de Leopoldina protegeu o país de “nefastos interesses liberais”.
Nos últimos anos, a narrativa do decreto tem sido reapropriada por diversos atores políticos da “nova direita” (especialmente bolsonaristas e monarquistas), que passaram a fazer um uso ambíguo do papel de Leopoldina no processo de independência.
No dia 2 de setembro de 2020, a deputada federal Carla Zambelli (PSL) postou, no Facebook, um card no qual afirmava a assinatura do tal decreto por Leopoldina. Antes dela, em 15 de novembro de 2019, de forma ainda mais incisiva e provocativa, o então ministro da Educação, Abraham Weintraub, tuitou algo semelhante, afirmando que os dois atos mais importantes da história do Império do Brasil teriam sido feitos por mulheres (Leopoldina, no caso da Independência, e Isabel, na Abolição).


Todas essas apropriações do papel político desempenhado por Leopoldina oferecem oportunidade para refletir sobre os usos (e principalmente os abusos) políticos do passado, merecendo análises que levem em conta as questões relacionadas à atuação das mulheres ao longo da história. Se, por um lado, exaltam o protagonismo feminino na História; por outro, tentam esvaziar e anular as demandas feministas no presente. Mas deixemos essa discussão para outro momento.
Aqui, vamos nos concentrar no que há de verificável a respeito do que ocorreu no dia 2 de setembro de 1822. Com tanta gente repetindo a narrativa do decreto, fica difícil não acreditar que ela possa ter algo de verdadeiro. Então, vamos às pesquisas.
O que verificamos
A arquiduquesa Maria Leopoldina de Habsburgo nasceu em Viena, filha da imperatriz e do imperador do Sacro Império Romano-Germânico. Aos 20 anos, casou-se com dom Pedro e veio juntar-se ao esposo, que vivia na América com toda a corte portuguesa.

(Wikimedia Commons/Palácio de Schönbrunn)
Em 2017, celebraram-se os 200 anos da chegada de Leopoldina ao Rio de Janeiro. Nessa ocasião, a Câmara dos Deputados publicou uma obra comemorativa escrita pelo consultor legislativo e historiador José Theodoro Mascarenhas Menck. O escritor Paulo Rezzutti, que é membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e tem se dedicado a escrever sobre a família imperial brasileira, também aproveitou o momento para lançar sua biografia sobre Leopoldina.
Ambos os autores dão especial importância à reunião do Conselho de Estado no dia 2 de setembro de 1822 e ao papel de Leopoldina nas articulações que levaram à separação política entre Brasil e Portugal. Mas nenhum deles menciona que ela tenha assinado um decreto ou qualquer documento que tornasse o Brasil independente.
Se você acha que hoje em dia atravessamos um momento de turbulência política, não faz ideia da situação que Leopoldina vivenciou no curto prazo em que viveu no Brasil. O início dos anos 1820 foi intenso! Um revolução eclodiu em Portugal e seus desdobramentos obrigaram dom João VI a voltar para Lisboa (lembre-se: em 1808 o rei português havia se refugiado com toda a família real no Rio de Janeiro durante a invasão napoleônica). No Brasil, deixou como príncipe regente seu filho Pedro, que não ficou em situação muito confortável.

(Wikimedia Commons/Museu Nacional de Belas Artes)
Na prática, o governo português estava sendo exercido pelas Cortes Gerais, com autoridade acima do rei. Reunidas em Lisboa, essas Cortes eram formadas por deputados, sendo a maior parte deles portugueses, que buscaram reduzir a autonomia das províncias e limitar os poderes de Pedro no Brasil. Passaram a pressionar o príncipe para que regressasse a Portugal. Ao mesmo tempo, Pedro também enfrentava animosidades no Brasil e buscava apaziguar movimentos revoltosos nas províncias.
O ano de 1822 foi particularmente complicado para o governo do Brasil. Em agosto, Pedro teve que fazer uma viagem à província de São Paulo, deixando Leopoldina, sua esposa, como regente no Rio de Janeiro durante sua ausência. Foi nessa ocasião que as coisas em Portugal degringolaram de vez e as Cortes Gerais deram um ultimato para que Pedro deixasse o Brasil. No dia 2 de setembro, o Conselho de Estado se reuniu no Rio de Janeiro sob presidência da jovem princesa.
Muito do que sabemos sobre o que aconteceu entre os dias 2 e 7 de setembro de 1822 vem de relatos realizados muitos anos depois ou correspondências trocadas por autoridades envolvidas. Esses episódios deixaram muito pouca documentação oficial e é possível que os próprios contemporâneos não tivessem dado a relevância que tais episódios ganharam na memória que se construiu nas décadas seguintes sobre a independência do Brasil.

Atualmente, vários historiadores e historiadoras, como Cecília Helena de Salles Oliveira e Hendrik Kraay, têm problematizado o processo de construção do “7 de Setembro” na memória nacional. Algumas décadas atrás, Carlos Oberacker Jr. abordava o “Grito do Ipiranga” como um problema para os historiadores num artigo que antecedeu seu livro sobre Leopoldina, considerado como a biografia mais bem documentada sobre a imperatriz.
Oberacker foi um dos autores que procurou demonstrar a relevância do papel político da então princesa no processo de separação entre o Brasil e Portugal, contrapondo assim a omissão predominante na maior parte dos autores que, antes dele, escreveram sobre a independência.
Os autores que ressaltam a sessão do Conselho de Estado sob presidência da princesa, tal como Oberacker, apoiam-se principalmente em um relato transmitido por Vasconcelos de Drummond (um dos conselheiros) ao cronista Melo Morais, segundo o qual os conselheiros teriam decidido por unanimidade pela separação do Brasil e proposto que se escrevesse a dom Pedro orientando-o a proclamar a independência, decisão que Leopoldina teria sancionado “com prazer”.
Os relatos recolhidos por Melo Morais dão conta também de que duas cartas foram remetidas a dom Pedro após essa reunião. Uma escrita por José Bonifácio de Andrada e Silva e outra pela princesa, ambas contendo as recomendações do Conselho de Estado ao futuro imperador.
Nessas cartas é que estariam contidas as célebres palavras atribuídas a Leopoldina: “O Brasil será em vossas mãos um grande país. O Brasil vos quer para seu monarca. Com o vosso apoio ou sem o vosso apoio ele fará a sua separação. O pomo está maduro, colhei-o já, senão apodrece”.

As referidas cartas, contudo, nunca foram localizadas em sua versão original. Teriam sido publicadas em folheto na década de 1820 e daí copiadas por cronistas e historiadores, sendo sua existência mencionada por testemunhas que vivenciaram os acontecimentos entre os dias 2 e 7 de setembro de 1822.
A ocorrência da sessão do Conselho de Estado é confirmada pela ata redigida pelo secretário Joaquim Gonçalves Ledo, mas nada consta nela sobre a atuação de Leopoldina. Sobre as determinações vindas de Lisboa, a ata apenas revela que os conselheiros receberam-nas como um insulto e uma humilhação, não havendo contudo qualquer indicação sobre as resoluções do Conselho a respeito desse assunto.
Oberacker supõe que a falta de elementos sobre a decisão pela independência seria uma consequência das rivalidades existentes entre o secretário Ledo e os Andradas. José Bonifácio de Andrada e Silva teria sido aliado da princesa e a ele se atribui o papel de articular a independência junto com Leopoldina e dom Pedro.
Já a respeito de um “decreto da independência” assinado por Leopoldina, não há qualquer menção na bibliografia consultada pela equipe do projeto DETECTA. Nem em autores clássicos como Melo Morais, nem nos trabalhos já citados de Carlos Oberacker. Também não se faz referência ao suposto decreto nos verbetes sobre Leopoldina e a Independência escritos por Lúcia Bastos Pereira das Neves para o Dicionário do Brasil Imperial. Publicações mais recentes (como a biografia de dom Pedro, escrita por Isabel Lustosa; a biografia romanceada de Leopoldina, escrita por Marsilio Cassotti; e os trabalhos já citados de Menck e Rezzutti) também não mencionam o decreto.

Em um vídeo recente, Paulo Rezzutti esclarece que, por mais importante que seja realçar a participação de Leopoldina nos feitos que levaram ao 7 de setembro, seria incorreto afirmar a existência de um decreto da independência assinado por ela.
Consultada pela equipe do projeto Detecta, a historiadora Andrea Slemian, professora da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e especialista no tema da Independência, ressalta a necessidade de se entender a trajetória de Maria Leopoldina, cujo papel no processo de emancipação política deve ser destacado, independente de a princesa ter ou não assinado qualquer documento.
Sobre o assunto, Slemian produziu um artigo para a coletânea de cartas de Leopoldina e outro para um dossiê publicado pela Revista de História da Biblioteca Nacional. A historiadora enfatiza a fidelidade da então princesa à “tradicional legitimidade monárquica”, elemento fundamental para compreender sua atuação política.
Criada dentro de uma das casas dinásticas mais tradicionais da Europa, Leopoldina teria aderido à independência do Brasil, antes mesmo do marido, em nome da conservação da monarquia. Aproximou-se de José Bonifácio e de seus partidários, pois atuavam contra as Cortes e contra os riscos que elas representavam aos valores que defendia.
Além de destacar a influência que exerceu sobre dom Pedro para estabelecer internamente o equilíbrio nas disputas pelo poder durante o processo de independência, a historiografia também tem destacado a atuação de Leopoldina após 1822 no sentido de garantir, externamente, o reconhecimento do Império do Brasil pela corte de Viena. A imperatriz voltaria a assumir a regência e a presidência do Conselho de Estado em outras ocasiões até sua morte, em 1826.
*Vicente Detoni é mestre e doutorando em História; Pablo Bráulio é mestre em História e atua como professor na Educação Básica.
Envie dicas de conteúdos pra gente checar!
Se você já detectou conteúdos suspeitos ou duvidosos, envie pra gente. Basta preencher os campos abaixo. Na mensagem, deixe o link ou a referência de onde você detectou o conteúdo a ser verificado. Se você não tem nenhuma sugestão de checagem, mas quer deixar uma mensagem de apoio ou de crítica ao nosso trabalho, fique à vontade para registrar sua manifestação.
