Romances policiais são para poucos
Não poucos leitores, pois estes são milhões espalhados pelo mundo. As tramas de resolução de crimes e mistérios exercem grande fascínio sobre os leitores de todo o mundo. Queremos nos antecipar na resolução da trama. Queremos que o criminoso seja castigado. Queremos que tudo seja explicado. Queremos que o caos seja derrotado e a ordem seja restaurada, através da justiça, sempre implacável, sega e soberana. São estes os desejos que nós sequestram nestas tramas.
O problema é que a maioria delas é rasteira, superficial, canhestra, muitas vezes trivial. Trabalham muito mais nossos intestinos, nossa bile, do que nossos neurônios. Sequestram nossas emoções nestas tramas dicotômicas e nos entregam resoluções banais. Isto é o que a maioria dos autores de romances policiais conseguem entregar. Avisei que romances policiais são para poucos, pois são poucos os autores que conseguem derrotar esta banalidade.
E o policial italiano, o giallo, se destaca com autores de destaque como Leonardo Sciascia, Carlo Lucarelli, e Andrea Camilleri.
Giallo é o nome que os italianos usam para chamar a literatura policial como um todo e como usamos para definir a literatura policial produzida na Itália. A origem do nome é curiosa. Vem da série Il gialli Mondadori (O Mondadori amarelo) , projetado por Lorenzo Montano para a Editora Arnoldo Mondadori que desde 1929 pública os principais romances policiais do mundo, sempre com suas características capas amarelas.
Andrea Camilleri (1925-2019) era um destes poucos autores que não apenas soube usar os clichês do gênero. Ele os dominava e os superava em tramas que possuíam muitas camadas, muitos matizes, assim como a sua Sicília natal.
A cidade fictícia de Vigàta é um mundo. Presente em boa parte da obra de Camilleri, a cidade tem história, camadas, sabores e cores. É viva e quente. E em seu prosaísmo está o seu encanto. Justamente como o protagonista recorrente dos romances
Salvo Montalbano é um homem de meia idade cheio de manias como tantos outros. Seu humor é associado ao clima do dia. Procrastina a burocracia da delegacia de polícia do qual é o comissário. Vive às turras com seus subordinados e colegas, principalmente com o seu vice-comissário, o solar, sedutor é bom vivant, Mimi Augello. Gosta tanto da boa comida, que odeia conversar enquanto come. Os romances são recheados de boas receitas por ele saboreadas (ele mal sabe cozinhar um ovo) e por suas leituras. Montalbano não é o agente da lei truculento. Tem a sensibilidade de um poeta inspirado na desolação de sua Sicília. E apesar da cólera que lhe é típica, tem uma alma sensível, empática, doce muitas vezes.
Diferente de outras figuras das narrativas policiais, as excentricidades de Montalbano poderiam ser muito bem as nossas. Nos identificamos e o acompanhamos, não como meros espectadores de sua genialidade, como um Watson sempre admirado com o protagonista de seus relatos.
Não. Andamos ao lado de Montalbano. Dividindo suas agruras, frustrações, medos e vitórias. E junto com ele, lemos a Sicília. Mas não o texto épico de sua História, nem uma coletânea de sonetos inspirados em suas paisagens. Lemos a trama policial que evidencia suas fraturas. Junto com Montalbano, descobrimos uma Sicília cheia das contradições inerentes ao ser da humanidade.

Dentre toda a série do comissário Montalbano publicada em português, destaco aqui três. O ladrão de merendas é o terceiro romance da série, publicado em 1996 na Itália e em 2000 no Brasil. Nele, acompanhamos duas investigações. A oficial, sobre o assassinato de um idoso supostamente esfaqueado no elevador de seu prédio. A outra, subterrânea, percorre o submundo e as margens da sociedade de Vigàta, atrás do ladrão do título. Aqui vemos um Montalbano idealista, e querendo descobrir a verdade e com esta descoberta fazer justiça. Vale dizer que nem sempre as duas estão associadas.
Em Guinada na vida, publicado originalmente em 2003 e aqui em 2005, a trama começa com um Montalbano em crise de meia-idade, nadando no mar em frente à sua casa e descobrindo um cadáver boiando na água. A tentativa de levar o cadáver quase o mata. A alusão é clara, se não formos vigilantes, o passado pode tornar-se o peso que nos afoga. A trama nos levará à Mafia. Não a máfia hollywoodiana estereotipada. Uma máfia real, e justamente por isto muito mais assustadora.

E por fim, temos Lua de papel, originalmente publicado em 2005 com sua versão brasileira de 2007, fala sobre como o método indiciário, dissecado por Carlo Ginzburg em Mitos, emblemas e sinais (1989), pode justamente nos levar ao erro, quando não somos atentos ao todo.
Justamente aí torna-se interessante entender a trama policial sob o espectro da interpretação de Ginzburg no capítulo Sinais do referido livro. O trabalho do detetive assemelha-se ao do historiador na sua necessidade de objetividade na análise das evidências. Assim como o comissário, o historiador coleta dados, constrói uma narrativa dentro de uma temporalidade e assim processa os fatos delimitando as possibilidades que as pistas oferecem.
Ao procurar bons romances policiais, busque os que tratam o leitor como um cúmplice de investigação. Como o auxiliar que não apenas acompanha o investigador, mas que pode investigar junto, chegando à mesma conclusão, e assim consolidando a narrativa, ou chegando à outros resultados, e assim enriquecendo a trama que não necessariamente precisa ser linear, e sim formar uma teia, que nos captura e justamente por isto nos fascina.
Como disse, romances policiais realmente bons são para poucos. Para poucos autores.
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