O Mito do Mito

Uma análise semiótica do discurso conservador do bolsonarianismo

Se há um inimigo corrente para o pensamento conservador ele se apresenta na forma do tempo presente. Um conservador é alguém preso a um passado, seja ele real ou fictício, um passado que espanca os fatos para pode ser encaixar em uma narrativa falaciosa. As bases do pensamento conservador é apelar para o passado como uma Idade do Ouro, ainda mais em contraste com o tempo presente, geralmente enxergado como degenerado, perdido, poluído, roubado. Não à toa que observamos, principalmente nas redes digitais, o ressurgimento com força de movimentos monarquistas, integralistas e cristãos fundamentalistas, inclusive se utilizando de elementos que nos são totalmente alheios, como a imagem dos cruzados “defensores” da cristandade.

Esse conservadorismo rasteiro e canhestro, cuja gênese se encontra muito mais na paranoia gerada pela manipulação dos afetos do que de qualquer outro elemento, tomou o cenário político brasileiro de assalto, principalmente após as grandes manifestações de Julho de 2013, cujo significado os historiadores do futuro já estão tendo um bom bocado de trabalho para definir. Ele se aliou ao aspecto de dois elementos: o espírito reacionário das nossas elites econômicas e uma indignação popular contra o cenário político vigente. Esses três elementos se amalgamaram e pavimentaram a escalada proto-fascista na qual a nossa incipiente democracia liberal mergulhou a partir da eleição de 2014, o golpe parlamentar de 2016, as eleições de 2018 e o atual cenário político sob os auspícios de Jair Bolsonaro, nosso primeiro presidente pós 1985 que abertamente defende o nefasto período entre 1964 e 1985.

Notamos que Bolsonaro, principalmente em sua versão como chefe de governo e candidato a chefe de governo, nega o presente, o vê como um tempo degenerado pelos anos petistas no poder federal, e faz um apelo ao passado, mas não ao seu passado, esse também ele nega, não mostra as inconsistências em ser deputado por 30 anos e não apresentar trabalho legislativo, principalmente para as camadas que propaga defender, como policiais e militares, digno de nota e respeito,também nega o passado recente do Brasil, com os avanços sociais e econômicos apresentados durante os governo Lula e os primeiros anos de Dilma no Alvorada. O passado para Bolsonaro é mítico: ele apela aos tempos dos generais, ao março de 1964, aos atos institucionais, à tortura, à carnificina, ao autoritarismo.

O grande equívoco, proposital e manipulativo, por sinal, do atual ocupante do Alvorada é transformar o período numa espécie de passado glorioso, onde tudo no Brasil florescia, havia paz e justiça social para todos. Uma espécie de reino lusitano do período de Vasco da Gama – D. Manuel ou o próprio D. Sebastião, que aliás foi um governante medíocre, que devido ao contexto da União Ibérica, teve seu reinado reimaginado – esperando o retorno de sua glória na figura do Desejado. E é justamente nesse messianismo sebastianista em que o bolsonarismo-olavista consegue manipular os afetos: ao moralizar o período histórico, julgar o passado como bom e o presente – engraçado como o presente, pela sua mobilidade sempre se mistura com o futuro e o passado é como um deus Cronos, que devora e digere este passado. para o reacionário, esta digestão significa idealizar o passado constantemente, para o progressista, a urgência está sempre em colocar elementos do futuro que ele imagina neste presente que vivemos constantemente – como mau, ganha-se um trunfo enorme, se projeta nessa figura mística de um salvador, de um redentor, a salvação de toda a nação. Bolsonaro se apresenta, então, como uma espécie de Dom Sebastião treinado na Escola das Américas e forjado nas zonas milicianas do Rio de Janeiro, cuja missão é limpar, se atentemos à escolha das palavras, não é em vão, a nação da sujeira vermelha instaurada pelo comunismo de Lula.

Obviamente esse é um discurso com pés de barro, ele não se sustenta sem uma boa dose de manipulação, tanto midiática, quanto dos afetos políticos. O bolsonarismo consegue ao mesmo tempo se apresentar como popular e alinhado com os ideais da burguesia rentista, uma enorme contradição per se. Come pão com leite condensado, faz refeições em bandejão, assina leis com canetas Bic, ao mesmo tempo em que promove uma farra com cartões corporativos e se colocava contra, enquanto deputado, a diminuição de verbas auxiliares aos nossos nobres congressistas. Se apresenta como um defensor dos trabalhadores, mas emprega em seu gabinete um facínora que pretende acabar com as mínimas garantias trabalhistas vigentes. E não sejamos iludidos: tudo isso é devidamente arquitetado, no caos informativo, quem paga a banda escolhe a música.

Entender o apelo que líderes carismáticos, ainda mais aqueles de viés mais autoritário, tem sobre as massas é um exercício sociológico e semiótico, devemos entender como o discurso do bolsonarismo é entregue para a população, principalmente para o seu alvo favorito, ou seja, aquelas pessoas cuja indignação legítima contra a corrupção, a violência urbana e a retração econômica se transformaram em seu curral eleitoral.

Esse apelo imagético, seja ao exaltar Ustra no Congresso, seja seus hábitos alimentares, seja no vestir, seja indo entregar taça de campeonato de futebol, enfim, o teatro político, é muito bem planejado, nada no bolsonarismo é ao acaso ou espontâneo, pelo contrário, é estudado para maximizar seu impacto em sua base e indignar seu detratores. E nesse ponto precisamos nos lembrar que o bolsonarismo não se resume a Jair e sua prole, e sim a todo séquito olavista-militar que o cerca. Jair, por si, é tão profundo como um pires de porcelana.

A imagem de homem simples, de fala dura e ríspida, autoritário e austero, um homem do povo que consegue dialogar com os poderes postos, aproxima Jair de outro presidente da nossa república: Jânio Quadros. Jânio foi um gênio da manipulação discursiva, sabendo o que falar para quem falar, além de ser um notório criador de caos narrativo e saber se esquivar de afirmações mais categóricas e potentes. Jânio e Bolsonaro tem essa capacidade: conseguem transmitir a sua mensagem, sem atribuir muito o significado de seus signos, e deixar para que seus interlocutores imprimam e plasmem esses sentidos.

Pegue por exemplo a infame frase “bandido bom é bandido morto”, essa frase não é direcionada para o militante de esquerda, e sim para o trabalhador que acabou de ter seu celular parcelado furtado enquanto voltava da labuta diária, ao dar vazão ao ódio Bolsonaro cativa os corações, mentes, olhos e ouvidos, fazendo que sua influência sobre as massas cresça na mesma proporção que causa indignação de seus detratores.

Ao assinar um decreto com uma caneta esferográfica a mensagem que ele passa é vazia por si só, porém é vista como um totem de simplicidade por seu eleitorado e um ato de hipocrisia por seus detratores. É através do uso de um discurso mítico, ou seja, um signo cujo significado é posto e facilmente transmitido, que Bolsonaro conseguiu se metamorfosear de um deputado baixo clero, figura habitual de programas de auditório de qualidade questionável em uma ameaça à classe trabalhadora e a democracia. O bolsonarismo soube muito bem criar a figura mítica do Mito, transformando numa mistura insólita de Getúlio Vargas, Jânio Quadros, Geisel que curiosamente desprezava Bolsonaro e o chamava de “péssimo militar”, Dom Sebastião e Jesus Cristo, onde até o atentado contra a sua vida durante a campanha passa a ter um significado de renascimento, de renovação, porém, mais uma vez, apenas da boca para fora, pois as atitudes, as disrupções, a veia autoritária e antidemocrática, ainda se apresentavam lá. Se o PT teve que fazer uma guinada para o centro para chegar e se manter no poder, ou seja, se moderar, o bolsonarismo chegou ao poder justamente se radicalizando, porém não na via institucional, essa está sendo radicalizado durante o seu governo, mas na via discursiva e mítica. Quanto mais autoritário, mais “simplisão” Bolsonaro tenta se apresentar.

A nossa questão é: até quando esse discurso desprendido da realidade pode aguentar? Quantos pontos mais o PIB tem que cair e a informalidade subir até que a máscara mítica e o verdadeiro Bolsonaro se apresentar? Para isso, infelizmente, nem a semiótica nem a história nos são ainda capazes de nos responder.


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