
Nos anos 1980, havia nos EUA, uma cultura de bailes (balls), em que marginalizados da sociedade (negros, latinos, transexuais, drag queens) se reuniam para competir entre si em desfiles de diferentes categorias. Esses bailes são retratados no documentário de Jennie Livingston, Paris is Burning, que enfoca uma boate no Harlem com o mesmo nome do título do documentário. Ali, além de conhecermos como a cultura de bailes funciona, também conhecemos as histórias de alguns personagens importantes e suas casas (houses).
No ano de 2018, é lançada uma série chamada Pose. Com 8 episódios, a primeira temporada da série retrata a vida de pessoas transexuais, latinos, negros e drag queens nos bailes dos anos 1980. Pessoas que lutam todos os dias para sobreviver, mas que nas noites se tornam outras, vivem seus momentos de glória nas passarelas das boates, competindo e levando seus troféus pra casa.
Todos os personagens, na série, têm sobrenomes que remetem às suas houses. PARRINE (2017) retrata estes lugares da seguinte maneira:
[…] jovens queer, muitas vezes rejeitados por suas famílias biológicas, encontram refúgio e reconhecimento em outras pessoas queer que lhes acolhem, adotando um sobrenome em comum e criando relações de parentesco. A casa tem uma mãe que a coordena e rege, além de filhos que, juntos, participam competitivamente dos bailes em diferentes categorias.
A história se inicia, inclusive, com Blanca, uma garota que vive na “House of Abundance”, abandonando este lugar por conta da truculência da mãe, Elektra, e decidindo criar sua própria casa, a “House of Evangelista”. A partir daí, outras histórias se conectam. Ela acolhe em sua casa um garoto negro (Damon) de família de classe média que é expulso de casa porque é gay e quer ser dançarino de balé; uma garota transexual (Angel), prostituta, que tudo que deseja é ter uma vida “normal”: casar, ter filhos e ser dona de casa; um rapaz negro (Ricky) que vive nas ruas roubando e tudo que deseja é uma cama quente para dormir; e um jovem latino (Papi) que também vive nas ruas vendendo drogas.

REALNESS E VOGUE
Dentro dos bailes, há categorias, e dentre elas, duas chamam atenção: “Realness” e “Vogue”:
Vogue foi uma dança desenvolvida nesses bailes e que ganhou importância mundial com o lançamento da música “Vogue”, de Madonna, em 20 de Março de 1990. Antes do sucesso, a dança já era conhecida dentro dos bailes. Ela foi inspirada em poses de capas de revista famosas, como a Vogue, e consistia em um trabalho corporal em ângulos. Essa dança é representada na série na primeira cena do primeiro episódio, com alguns filhos (children) de Elektra, desenvolvendo a dança em ângulos pouco imaginados. Ainda no primeiro episódio, a dança nos é apresentada com muita maestria nas ruas da cidade. Ali, é possível observar como ela é desenvolvida e como funciona uma competição de vogue.
Já “realness” é uma categoria em que os candidatos deveriam se “passar” por um certo tipo de pessoa, muitas vezes ligadas ao universo branco, heteronormativo e rico, e isso gerou grandes debates à época do lançamento do documentário de Livingston. Butler (1993), sobre a categoria:
Na produção de realness feita pelos bailes, testemunhamos e produzimos a fantasmática constituição de um sujeito, um sujeito que repete e copia as formas legitimadoras pelas quais ele mesmo foi degradado, um sujeito formado no projeto de perfeccionismo que complete e interrompe suas próprias representações. Este não é um sujeito que se acanha das suas próprias identidades e decide instrumentalmente se ou como trabalhar cada uma delas hoje; ao contrário, o sujeito é a imbricação incoerente e mobilizada de identificações, uma repetição que funciona, ao mesmo tempo, tanto para legitimar quanto para deslegitimar as normas de realness pelas quais é produzido.¹
Apesar dos debates a respeito desta categoria, é preciso levar em conta o que isso representava diante daquela população. A representação de um status a se alcançar, ou até mesmo a necessidade de provar que ser da aristocracia branca se define também pela maneira como se representa isso. É, inclusive, possível ver uma crítica a esse sistema que divide as pessoas pela cor de sua pele, pelas roupas que usa e a maneira que se porta.
CONCLUSÃO
A série “Pose” representa fortemente a cultura de bailes que ocorreu na década de 1980 e é uma maneira de nos lembrar que essas pessoas marginalizadas existiram, apesar do que se pareça, e também foram resistência num período tão difícil para queers, com o surto do HIV e o grande número de mortes de pessoas LGBT por conta disso.
NOTAS
1 Trecho retirado do artigo de Parrine, com tradução livre da mesma.
BIBLIOGRAFIA
PARRINE, Raquel. Construção de gênero, laços afetivos e luto em Paris is Burning. In: Estudos Feministas, v. 25(3), n. 530. Florianópolis. Set-dez 2017. pp. 1419-1436
LIVINGSTON, Jennie. Paris Is Burning. Burbank: Miramax Home Entertainment, 2005.
MURPHY, Ryan. Pose. EUA: 20th Television, 2018.

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