Uma possível leitura do conto A Intrusa
Entre eles os irmãos não pronunciavam o nome de Juliana, nem sequer para chamá-la, mas procuravam, e encontravam, razões para não se pôr de acordo. Discutiam, por exemplo, a venda de uns couros, mas na verdade tratava-se de outra coisa.
A Intrusa, in O Informe de Brodie — Jorge Luis Borges
Na minha primeira leitura do conto A Intrusa, do argentino Jorge Luis Borges, parte do livro O Informe de Brodie, publicado em 1970, quase passei por um acidente cardiovascular, por conta de dois motivos: à época andava tendo uns problemas meio sérios de saúde - esses eu já não tenho mais, possuo outros agora - e porque durante a leitura e após ela eu tive o prazer de ser apresentado ao subtexto, de forma clara e direta.
Subtexto pode ser definido como uma intenção não escrita do autor passar um discurso através de metáfora ou uma alegoria, ou pela dubiedade que certas palavras apresentam. Ou pela simples omissão de desfecho, recurso usado em abundância na literatura moderna. Lendo as palavras de Borges em A Intrusa consegui entender o subtexto, claro que já sabia o que era antes, e sim eu já havia lido outros textos profundos com múltiplos significados. Mas com este conto, pela primeira vez, cheguei a esse subtexto sozinho, sem ajuda de nenhum professor, comentarista ou leitura prévia. Um feito para um leitor em formação digno de memória e toda celebração.

Eu devia estar no segundo ano do ensino médio - eu acho – e tinha um professor de português que eu sempre idolatrei, pois foi esse professor, Carlos, que me apresentou a leitura e literatura para além dos bancos escolares, aquela leitura pelo prazer da leitura e da reflexão. Fui conversar com ele sobre a minha interpretação do conto e ele me disse que ela estava “certa”, mas não correta, pois haveriam tantas multiplicidades de leitura em um texto borgeano, ficando quase impossível de se encerrar todas as portas interpretativas.
E por qual chave de interpretação utilizei, e utilizarei, para o conto? A sexualidade.
A história do conto é extremamente simples: dois irmãos, Cristiano e Eduardo Nelson, que após a primeira cena são chamado de Nielsen, moram em uma cidade próxima a Buenos Aires , Turdera, hoje parte do partido Lomas de Zamora, região da Grande Buenos Aires, em fins do século 19. Aliás, a região, chamada misticamente de Sul por Jorge Luis Borges, é sempre referenciada e referendada pelo escritor portenho, servindo de um topos quase ideal e mitológico na literatura borgeana. Os irmãos Nielsen vivem uma vida muito dura, marcada pela lida campeira, pelos jogos, pelas brigas e pelas bebidas, num quadro típico da mitologia do gaúcho pampeiro, figura sempre presente na obra de Borges como símbolo de um limiar entre a civilização e a barbárie. É preciso deixar claro que gaúcho não é apenas o gentílico de quem nasce no Rio Grande do Sul, mas sim denomina o vaqueiro, errante ou não, das planícies da região Platina, estando presentes no Rio Grande do Sul, Paraguai, Uruguai e Argentina. A vida de Cristiano e Eduardo ocorria e era vivida normalmente, com o silêncio de ambos, há incríveis três falas e nenhum diálogo no conto, a dureza da vida, até que um dos irmãos decide, literalmente, arranjar uma mulher, Juliana.

Juliana é totalmente coisificada por Cristiano, com quem não troca absolutamente nenhuma palavra. A marca de Caim surge quando Eduardo e Juliana trocam alguns olhares e se enamoram. Cristiano, então, resolve autorizar Eduardo a usá-la como quiser.
O que se segue, então, é evidente: naquela vastidão, distante no tempo e no espaço, como está escrito no prólogo do livro, Borges foi um notório escritor de prólogos, os dois irmãos percebem que o amor, em amplos sentidos, que um sente pelo outro é maior do que qualquer coisa que possam sentir por uma terceira pessoa, ficando evidente o título do conto, A Intrusa: Juliana é uma intrusa, um fator fora da curva, um resultado inesperado, em um mundo dominado pela masculinidade, pela frieza, pela falta de sensibilidade. Os gaúchos, assim como os cowboys dos westerns, precisam ser homens sem sentimentalismos, que se sentem completos sós ou apenas na companhia de seus pares.
Não é à toa que no final da narrativa Juliana simplesmente desaparece, não fica claro se ela é morta, devolvida ou expulsa, e os irmãos passam a reviver o silêncio de antes, um silêncio que salta aos olhos como uma alegoria à homossexualidade dos irmãos, sublimada por questões de modelo de masculinidade esperada pelas sociedades latinas. A aspereza dos irmãos reflete essa sublimação dos desejos carnais assim como do meio em que estão inseridos Eduardo e Cristiano Nielsen.

A Intrusa é um dos poucos contos em que Borges aborda questões de amor, sexo e sexualidade, um dos poucos temas tangenciado pelo escritor portenho ao longo de sua carreira literária. Por conta dessa escassez de linhas sobre o tema que o triângulo amoroso entre os Irmãos Nielsen e Juliana salta aos olhos, Borges, um herói da alegoria e da metáfora, nos passa uma mensagem clara e evidente: devemos nos render aquilo que somos e como somos, ao expulsar Juliana do convívio os irmãos se reencontram, voltam a ser quem era e dessa forma rude são felizes. Além é claro da incapacidade de alterar aquilo que nos torna nós mesmos, nossa essência. Como em toda sua obra, Borges ao tratar de sexo e sexualidade não trata de forma direta e simplesmente sobre o tema, usando de figuras de linguagem e ferramentas retóricas ela dá camadas de interpretação e sentido para seu texto, fazendo com que a leitura ganhe ainda mais profundidade.

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