O uso político do revisionismo histórico

O historiador tem como dever, função e propósito olhar sempre para o passado de forma crítica e criteriosa. Já há muito tempo, principalmente pelos avanços teóricos metodológicos e teóricos que aproximaram o historiador de outros cientistas sociais, como o sociólogo, o economista, o crítico literário, antropólogo, entre outros, a história se afastou da busca de uma verdade única, acrítica e totalizante, hodiernamente a ciência histórica está cada vez plural, tanto em suas interpretações dos fatos e tempos históricos quanto das suas conclusões.
Atualmente, historiadores, se debruçando sobre o mesmo objeto de estudo, podem chegar à conclusões muito ímpares e díspares ao final de sua pesquisa. Pegue por exemplo a história colonial da América Portuguesa: existem teorias tão diversas sobre a cultura canavieira que poderíamos levar uma vida de leitura apenas para entender os modelos teóricos propostos.

Uma das maneiras de se olhar criticamente para o passado é revisar suas interpretações, com base na releitura de documentação e uma nova coleta dados já consolidados. É preciso nos lembrarmos: ao fazermos a escrita da história estamos sempre nos colocando em diálogo com uma produção pretérita, por tal motivo é preciso sempre fazer esse exercício de revisão bibliográfica, além de uma revisão hermenêutica das fontes, e quando possível se utilizar de novas formas heurísticas dos corpos documentais postos.
Isso não implica, ou abona tanto o historiador quanto o leigo, em negar fatos históricos postos como alguns adeptos do chamado revisionismo histórico usam como método. O grande problema do revisionismo histórico é semântico, pois podem ocorrer ao menos duas interpretações possíveis: a primeira, mais legítima, que se aplica à revisão da história, da ciência que interpreta os fatos passados do homem e da sociedade que o rodeia; já a segunda, uma farsa intelectual, é um movimento de negação de fatos históricos, principalmente fatos que são muito polêmicos ou que causem comoção midiática, como genocídios, ditaduras, revoluções, guerras e entre outros tantos episódios.

Nesse segundo sentido, por exemplo, há quem diga que a Ditadura Civil-Militar instaurada no Brasil após o Golpe de 1964 não existiu, pelo simples motivo do regime ter cooptado as instituições legais e assim dar um verniz de legalidade para todas as brutalidades e autoritarismos praticados por ele. Ou há quem afirme categoricamente que o Holocausto não existiu, não passando de uma conspiração judaica para justificar a criação do Estado de Israel, entre outras vigarices. O problema não está apenas na negação de fatos históricos comprovados em si, mas sim no uso dessa negação, principalmente com fins populistas, no pior sentido que essa palavra pode conter, e políticos. A negação do Holocausto pela extrema-direita francesa e pelo ex-presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad, tem como objetivo agradar uma parcela de seus eleitorados, principalmente uma parcela mais radicaliza e cooptada ideologicamente através dos meios de comunicação massificados, ou através da pós-verdade e da despolitização.
Aqui no Brasil os atuais conservadores têm se esforçado para minimizar, relativizar ou ainda menosprezar, as conclusões e resultados obtidos pela Comissão da Verdade. E por que mobilizar esse esforço com tanto afinco? Acredito que a expressiva votação alcançada por Jair Bolsonaro, tanto em seus tempos como deputado federal pelo Rio de Janeiro, como no último pleito que o elegeu para o cargo mais alto de nossa frágil república, pode nos dar uma pequena luz dos por quês dessa movimentação. Lembrando que a História é uma das formas de legitimar um motivo atual simplesmente alegando certa naturalidade dele por conta de ter no passado, como os nazistas fizeram ao declarar seu regime racista e genocida herdeiro de Frederico Barbarossa ou de Otto von Bismarck.
Acredito que seja óbvio que a história, a escrita da história, a historiografia e a política estão intimamente ligados, e até indissolúveis em algum nível, o historiador como cientista social tem um óculos que o ajuda a enxergar a realidade e seus objetos de estudo, tal óculos são suas convicções político-ideológicas, ser historiador e fazer a escrita da história sem esses óculos, ou pensar ser possível fazê-la sem os mesmos, é não entender o ofício, sua dinâmica, seu método. Ou seja, é preciso adotar uma atitude cética e crítica em relação ao revisionismo histórico que se apresenta unicamente como negação pura e simples, afinal, mesmo “morta” a história ainda assombra o presente, como um fantasma dos natais passados, principalmente por dar lastro e sentido para o presente, pois o passado carrega esse peso, esse fardo: o de ser um espelho para o presente, seja para o tempo presente se reconhecer ou não, ou seja, mostrando suas continuidades e rupturas. Ao tentar mudar o passado as forças políticas querem na verdade controlar o presente para manter a dominação para o futuro, como bem nos lembra George Orwell em sua monumental obra 1984 (você pode comprar o livro 1984 com desconto na Amazon e ainda ajudar o Clio a se financiar usando esse link)

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