Existe Casuística na História?

Uma busca para a resposta se causa e efeito pode e deve ser aplicado na história

Uma das formas mais autoevidentes de se explicar a realidade circundante a nos como sujeitos é estabelecer uma relação casuística entre dois ou mais eventos, conceitos, ações, etc. Tal salto lógico pode ser reparado em ideias como para cada ação há uma reação igual ou contrária ou isso aconteceu porque aquilo aconteceu. Como se trata de uma forma auto evidente, ou seja, ela não precisa de uma visada mais racional ou lógica sobre aquilo que é observado, tal relação não pode e não deve ser simplesmente adotada para toda e qualquer análise da realidade ou de objetos de estudo.

Não é raro ainda encontrar nas ciências ditas humanas essa antiga concepção positivista para explicar os fenômenos, ações, eventos, mentalidades, afetos, entre outras tantos conceitos, relacionados ao homem e suas múltiplas ligações entre si e a alteridade. Naquilo que tange a História, aqui grafada em caixa-alta para distinguir a ciência da relação de eventos pretéritos, o positivismo ainda é adotado principalmente como método no campo educacional, é deveras comum encontrarmos livros didáticos, maus livros didáticos, por sinal, ainda tratando a história como uma simples narrativa de eventos políticos, evidentemente na grande política, ou seja, aquela feita por altas autoridades e homens grandiosos em suas glórias e feitos, onde uma ação leva à outra até chegar aos nossos dias, ou seja, a nossa realidade é herdeira direta de um passado estipulado por ações casuísticas imutáveis nos obrigando a enxergar o presente e o futuro por esse mesmíssimo prisma. Ou seja, para essa História a história é casuística e teleológica, tem um fim objetivo e futuro, e, quiçá, previsível.

Aqui não vou entrar no mérito sobre aqueles estudiosos e entusiastas da ciência de Heródoto que enxergam no estudo da história como um exercício de futurologia ou de passados alternativos, como bem sabemos a história, e a História, nos ensinam, quando nos ensina, algo é a entender o presente e o meio no qual estamos contextualizados, qualquer outro regime temporal fugindo da relação entre passado-presente e presente-passado é, no mínimo, charlatanismo intelectual. Ao historiador profissional e o leitor de historiografia cabe, tangente ao futuro, apenas penetrar nos reinos de Morfeu e lá se perder em hipóteses sem fim e sem tese.

Se formos levar essa metodologia a ferro e fogo pode-se dizer que o curso do homem ao longo do tempo tem um quê de determinismo e de incapacidade de ação no desenvolvimento do processo histórico. Dessa forma a casualística aliada a esse fim teleológico da história nos anula como agentes históricos e esvazia nossa consciência histórica. Determinar que algo só aconteceu na história por uma simples relação entre causa e efeito mostra a nossa incapacidade como sociedade, e mais precisamente como historiadores e educadores, de entender a complexidade material e epistemológica de se entender tanto o passado quanto o presente e suas profundas relações de permanência e ruptura.

Se somos frutos dessa dialética pura e simples, além de rasteira, não faria sentido dividir a historiografia nos mais diversos campos onde ela atua, se somos apenas uma relação causa-efeito mas elencar toda trajetória humana, priorizando os aspectos sociais e políticos, e então teríamos na nossa frente a História Universal.

Isso é uma simplificação atroz! Há diversos historiadores se utilizando de fatores econômicos para explicar traços de mentalidade, ou vice-versa, ou seja, se utiliza de um campo como base para explicar outro totalmente diverso. Aqui vale a citação de dois grandes textos: A bolsa e a vida: a usura na Idade Média, do francês Jacques Le Goff, e A fabricação do rei: A construção da imagem pública de Luís XIV, de Peter Burke, seus autores partem de um objeto, recortando-o para explicar um outro totalmente diverso. Outros textos que se utiliza dessa mesma ferramenta de duplo gume são Os reis taumaturgos, de Marc Bloch e História social do jazz, de Eric Hobsbawm.

Representação da serpente Ouroborus em um antigo manuscrito alquímico grego

A realidade histórica é assaz complexa, fluída, vasta e facetada para ser resumida em um simples minueto, um cotejo dialético, onde um evento leva ao outro, que leva ao outro, e a outro, num Ouroborus perpétuo, imutável e imovel. Há diversos fatores ocorrendo na realidade histórica uma explicação abracando sua totalidade e universalidade, como bem queria Leopold von Ranke, dito pai da historiografia moderna, é um erro crasso de saída, pois afinal de comungarmos de uma mesma realidade posta por sermos partes e participes de uma mesma estrutura social a apreensão e entendimento dessa mesma realidade é a mais diversa possível, um lado mais metafísico desse escriba diria a realidade é apenas uma construção subjetiva das relações intra-exteriores e exo-internas atuantes nos seres sociais, mas há tantos conceitos numa mesma sentença que não ouso proferi-la nesse pequeno artigo.

Leopold von Ranke, dito o pai da historiografia moderna

Outro fator preponderante nessa crítica à casualística é no tangente à materialidade do processo histórico: ao se fazer um recorte social baseado em uma relação de opressão, afinal viver em sociedade é viver sob o signo do poder e poder sem opressão se esfacela no ar, percebemos a atuação diversa desses elementos nos mais diferentes estratos derivados desse recorte. Admitindo o recorte aplicado por Angela Davis podemos verificar como o processo histórico, em sua materialidade, ocorre e é movido diversamente por ricos e pobres, por homens e mulheres e por brancos e “pessoas de cor”, uso uma tradução livre do conceito “people of colour” do inglês pois acredito que esse exemplifica melhor o pretendido, além de sua somatória, ou seja, quando aglutinamos raça e classe, ou gênero e classe, e as devidas combinações possíveis.

Com o intuito de responder o título a qual propus para esse artigo devo dizer: conforme o meu entendimento epistemológico, metodológico, político, cultural e científico, se torna impossível crer que a História deva resumir a história numa mera narrativa buscando causas para eventos e apontar as consequências para o mesmo. Será que podemos dizer que as migrações germânicas levaram diretamente ao fim do Império Romano, que levou ao feudalismo, que levou a criação da nobreza, que levou a uma aliança entre o rei e a burguesia, que levou ao absolutismo, que levou ao Antigo Regime, que levou à Revolução Francesa e assim o “mundo contemporâneo tal como nós conhecemos”? Não seria resumir em demasia todo um processo histórico que além de assimétrico é desigual e excludente por sua própria natureza? Se a história fosse apenas possível dessa forma, por que haveria a urgência de uma História das mulheres? Ou uma História da cultura? Ou até mesmo uma História da cultura política das mulheres?

Enfim, tentar impor uma casuística como uma maneira transversal de se ler os processos históricos acarretaria como vimos em um reducionismo enorme, seja por conta dos múltiplos fatores jogados às margens do processo em si, fora a exclusão do indivíduo como agente histórico através de suas ações subjetivas ou coletivas. Como nos é dito e ditado nos bancos acadêmicos: a História, e sua materialização textual, a historiografia, é sim uma ciência, mas não uma ciência como as outras ciências, principalmente as da natureza e as biológicas, tentar imputar da mesma lógica dessas no reino de Clio seria, para além do reducionismo, uma manipulação da realidade em si.


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