Sonhos de transgressão: minha vida de menina num harém, é um livro de Fátima Mernissi (1940-2015). A socióloga nasceu em Marrocos, era muçulmana e passou a maior parte da sua infância nos haréns da família, sendo sua experiência a principal inspiração para a criação deste livro. Um dos principais pontos da obra é desmistificar as ideias dos haréns criadas pelas narrativas ocidentais, apresentando como todas as relações familiares estão entrelaçadas, trazendo algumas semelhanças com aspectos das próprias experiências infantis do leitor ocidental. O livro permite uma leitura leve mostrando toda uma rotina no harém para, principalmente, traçar a articulação das mulheres que viviam nesses espaços. O primeiro capítulo é real, mas os demais dialogam com a vivência da autora e seu imaginário para criar algo mais representativo do que uma biografia em si.
Logo no começo do livro o harém era separado pela sua casa, a sala de entrada e o pátio principal, local que ela só podia ter acesso quando sua mãe acordasse, caso contrário não poderia fazer nenhum barulho.Logo de frente onde Fátima ficava com seus pais estava o salão do seu tio, sua mulheres e seus sete filhos. Por seu tio ser o primogênito e mais rico que seu pai, ele podia ostentar mais. Consequentemente sua família também era maior, já que tinha condições melhores. Como Fátima relata em seu livro, a família de seu tio era em nove pessoas, contanto com seus sete filhos, sua esposa, ele e a irmã da sua esposa, que as vezes ficava com eles em torno de até seis meses. No outro salão ficava sua avó paterna, e como tradição sua família tinha que visitá-la duas vezes por dia, sendo uma de manhã e outra a noite para beijar sua mão. E no último salão – para Fátima o mais elegante – a sala de jantar dos homens, local onde somente eles tinham acesso. Lá encontrava-se um rádio, onde também somente os homens podiam manuseá-lo. Mas havia alto-falantes fora desta sala para as mulheres ouvirem quando estivesse ligado.

Jean-Auguste-Dominique Ingres
Ao descrever as roupas usadas pela sua família, tecidos simples com três camadas de roupa, encontramos o contraste com as obras de Jean Dominique Ingres. A primeira obra, chamada Bain turc, e a segunda chamada Odalisque with a slave, mostram uma realidade muito diferente da relatada por Fátima. E ela explica isso. O harém ao qual ela vivia se chamava harém doméstico, e esses ilustrados na obra de Ingres e que tiveram maior repercussão são os haréns imperiais. Os haréns domésticos permaneceram mesmo depois de 1909, quando os muçulmanos foram colonizados. São haréns onde moram grandes famílias e não há escravos, sendo que é possível encontrar casais monogâmicos, porém onde as mulheres são isoladas. Os haréns imperiais nasceram das conquistas e riquezas das dinastias muçulmanas, mas terminaram com os otomanos pelas potências europeias em 1909.
A história do livro se passa em 1940, momento no qual o Marrocos estava sobre o domínio dos franceses desde do século XIX. Dos portões do harém era possível ver cada vez mais a ocupação dos franceses pela região. Desse momento vemos como Fátima trabalha a analogia da liberdade e das fronteiras. As mulheres eram proibidas de saírem do harém sem autorização masculina, e isto era desconfortante para elas. Como a autora mesmo relata, sua mãe não se conformava com a realidade enfrentada por elas. A submissão, a necessidade da autorização não eram tratadas com naturalidade, na verdade muitas não aceitavam essa realidade e é importante ela trazer essa discussão em suas obras, pois essas mulheres estavam em desacordo com muito do que lhes era imposto. Existia um sonho de transgressão por parte dessas mulheres dialogando com a realidade do país que já fomentava a emancipação dos poderes franceses, tanto que a independência marroquina aconteceria em 1956. Elas ouviam rádio escondidas dos demais homens da casa, pois isso também não era permitido. Muitas das ideias nacionalistas eram favoráveis a libertação das mulheres. Apoiavam, por exemplo, o fim da segregação e o uso do véu. Eles lutavam contra os franceses e prometiam um novo Marrocos, onde todos seriam iguais. Todos teriam os mesmos direitos, e as mulheres poderiam viver com a monogamia. Muitos desses nacionalistas já praticavam a monogamia, como no caso do pai e do tio de Fátima. Os nacionalistas também eram contra a escravidão. Mesmo que os franceses a tivessem tornado ilegal, a escravidão ainda existia. Inclusive, algumas das co-esposas da avó de Fátima foram compradas no mercado de escravos.
Fátima também Logo no segundo capítulo, intitulado Scherazade, o rei e as palavras, ela fala sobre a história de As mil e uma noites. Sua mãe contara a história para ela. E Fátima relata ficar impressionada pelos ocidentais consideravam mais os aspectos físicos de Scherazad, pois onde Fátima vivia Scherazade era vista como uma heroína. Na história de As Mil e uma noites, o rei Schariar passou a matar todos as suas esposas após descobrir traição da sua primeira mulher com um escravo. Após Scherazade e sua irmã serem as únicas virgens vivas na cidade, ela se voluntariou a casar com o rei e encontra uma forma de não ser morta por mil noites, salvando sua vida e das outras mulheres. A história para elas era de fortalecimento e até empoderamento. E a inteligência a melhor arma para a mulher.
Edward Said já aponto sobre o “espelho invertido” no prefácio do seu livro Orientalismo, apontando, o que comumente vemos, como as sociedades árabes e muçulmanas são retratadas pelos povos ocidentais. E como é isso? É um jogo de espelhos criado pelos ocidentais onde a população oriental de modo geral (e com isso podemos entender os árabes, muçulmanos, islâmicos e religiões e povos não ocidenais) representa o que o Ocidental não é ou combate. Essas populações são tratadas como exóticas, abomináveis e perigosas. Chegamos ao ponto de afirmar pessoas com Burka ou Niqab (véus islâmicos) são terroristas. E o que Fátima Mernissi faz em sua obra Sonhos de transgressão é algo libertador Ao relatar como vivia quando era menina, não mostrava somente como era a vida no harém na década de 1940. O leitor se depara como as mulheres viviam naquele espaço, como pensavam, como se expressavam. E acima de tudo isso: como elas pleiteavam a liberdade feminina. O livro possui 22 capítulos, onde ela consegue relacionar diversos temas, sendo desde o nacionalismo, segunda guerra mundial até a vida dos ocidentais. Fátima faz algo incrível em sua obra de maneira muito natural, que é exaltar a mulher e a vida muçulmana, apresentando muitos dos problemas dos quais já temos conhecimento, mas similar em alguns aspectos vivenciados por nós mesmo na cultura ocidental. Mernissi não se considera uma mulher feminista, pois não vê o feminismo ocidental contemplando mulheres árabes e muçulmanas . O livro pode ser considerado um manifesto, pois é perceptível a preocupação da autora em humanizar os personagens inspirados não só em sua família, mas em sua cultura e em uma sociedade onde o que conhecemos do outro lado do mundo foi desvirtuado. Seu objetivo é fortalecer a sua cultura e demonstrar, principalmente, o engajamento das mulheres árabes.

Ficha Técnica
Nome: Sonhos de Transgressão
Autor: Fátima Mernissi
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 280
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