O Imaginário Medieval Em Westeros

Uma leitura crítica de George R.R. Martin a partir de Jacques Le Goff

O Rei da Noite

Uma leitura um pouco mais atenta dos bons títulos do gênero nos mostra que a maioria dos escritores de literatura de fantasia parte do mundo real, esse em que comungamos, entendemos e sentimos, para criar seus universos literários e suas histórias, de acordo com seus estilos, intenções e desejos. São raros aqueles que simplesmente criam um mundo do nada absoluta, admitindo a possibilidade que em arte algo é criado do nada absoluto, e tão raros quanto são aqueles que não se utilizam de eventos, personagens, estruturas, narrativas da realidade concreta para moldar e forjar seus contos e romances. Isso, obviamente, tem uma função literária: é muito mais fácil fazer a supressão da descrença com cenários que conhecemos do que naqueles que nos são totalmente novos. Um mundo sem paralelos ao nosso também implicaria uma falta total de empatia com o mesmo, seria uma construção literária totalmente ilegível e inteligível, além de potencialmente vazio em termos emocionais, ficando assim sem sentido e significado algum.

Podemos pegar, por exemplo, a obra de Robert E. Howard ou de J.R.R. Tolkien como exemplos: as histórias do primeiro se passam em nossa Terra só que em tempos ancestrais e imemoráveis, uma pré-história da nossa pré-história, porém se utiliza de alguns mitos e lendas que nos são palpáveis, como Atlântida; o segundo se utiliza de narrativas de povos nórdicos e germânicos, além de celtas, para construir tanto a sua Arda quanto suas mais diversas línguas. Tanto em Howard quanto em Tolkien o caminho é sempre o mesmo: parte-se do real para se chegar à fantasia, num movimento semelhante a sair do particular para se chegar ao universal.

O escritor estadounidense George R.R. Martin

Em termos estruturais um dos melhores exemplos da utilização da realidade para uma construção fantástica se dá por George Lucas e seu Star Wars: partindo de um estudo profundo de mitologia antropológica Lucas conseguiu aplicar na sua história sobre a Força, Skywalkers, Han Solo, Império e Rebeldes as teorias semióticas de Joseph Campbell, fazendo assim que uma história totalmente farsesca fosse lida e interpretada mais facilmente por gerações de fãs devotos, afinal Campbell consegue sintetizar em sua obra a estrutura narrativa geral do mito, principalmente através do conceito do monomito e de sua jornada do herói.

Em As Crônicas de Gelo e Fogo, magnus opus do estadounidense George R.R. Martin, erroneamente alcunhado de “Tolkien ianque”, e vamos entender o porquê do equívoco por parte da crítica especializada em outro texto futuro, não foge muito a esse tipo de percepção e fazer literário. Sem as diversas influências da realidade histórica boa parte das intrigas palacianas, da mitologia, das estruturas e a própria concepção de Westeros e Essos não poderiam existir. A história de Westeros nada mais é do que uma releitura fantástica de boa parte da história da Inglaterra, desde os primórdios do povoamento, passando pelas conquistas romanas, pelas migrações germânicas até a Guerra das Duas Rosas e o estabelecimento da Dinastia Tudor. Isso fica ainda mais evidente quando olhamos para o mapa do continente: uma junção formal das ilhas da Grã-Bretanha e da Irlanda.

E não apenas em aspectos de inspiração, Martin também recheia sua narrativa com uma política, uma economia, uma mitologia, uma sociologia e até uma história reais e calcadas na realidade material tal como nós conhecemos, ou seja, uma realidade plenamente funcional e plausível. Tal escolha acrescenta camadas de verossimilhança para uma história onde dragões voam e mortos voltam à vida. Essas camadas de “realismo” ficam ainda mais acentuadas porque Martin consegue imprimir em sua escrita, além da psicologia dos personagens, um fator a parte e não cabe nesse pequeno texto, um imaginário e uma mentalidade típicos daquilo que supomos ser o imaginário e a mentalidade do Ocidente medieval europeu.

Entretanto há um porém nesse quesito: as múltiplas crenças presentes em As Crônicas de Gelo e Fogo, e sua adaptação televisiva Game of Thrones. Essa diversidade de crenças e religiões, algumas inclusive afastadas da institucionalidade formal, se afasta muito do imaginário e da mentalidade do homem medieval, dominados pelos dogmas, símbolos, ritos e mitos do cristianismo católico romano. Ao pegarmos algum bestiário produzido no período, principalmente após a instituição das Cruzadas, conseguimos perceber como todo simbolismo medieval é amalgamado e significado pelo cristianismo, como por exemplo é o caso do unicórnio: durante os primeiros séculos do cristianismo medieval o unicórnio não era um cavalo e sim um peixe, sua transformação em cavalo se deu muito por conta do advento da cavalaria como uma potência política e social, além da ruralização da civilização do Ocidente medieval, porém o sentido do simbolismos do peixe continuava o mesmo no cavalo com um único chifre: a representação de Cristo, da renovação em Cristo.

O historiador francês Jacques Le Goff

Em termos de imaginário não há apenas a criação de seres mitológicos ou fantásticos, imaginário também é um conceito que une das palavras: imaginação e imagem, ou seja, tem haver com signos e significados, com simbolismos. É necessário ressaltar que o Ocidente medieval foi uma civilização basicamente iletrada por boa parte de sua existência, a forma mais comum de pedagogia e de leitura era o imago, símbolos que eram de conhecimento comum que ressaltava uma característica ou outra; bom uso do imago pode ser apontado nas iluminuras e miniaturas produzidas pelo período, geralmente um misto de texto escrito e imagético, escrito para o clero e imagético para a massa campesina, além dos vitrais e esculturas na arquitetura gótica religiosa. Em termos formais podemos apontar que imaginário são as imagens simbólicas que um determinado grupo social pode produzir, revelando assim muito de sua mentalidade e de sua psicologia. A leitura do imaginário possibilitou, por exemplo, o surgimento de um novo ramo na ciência histórica: a história das mentalidades, que se afasta ao mesmo tempo da história da arte, das ideias, intelectual, social, porém, ao mesmo, tange e dialoga com as mesmas.

Com isso em mente partamos para o que nos importa: é possível aproximar o imaginário westorosi com o imaginário do Ocidente medieval? A resposta não poderia ser mais positiva…

Para corroborar nossa ideia imaginemos um dos principais plot de As Crônicas de Gelo e Fogo: a luta dos vivos contra os mortos que trazem o medo, a noite e a morte. Um dos elementos mais presentes no imaginário medieval era justamente a morte, principalmente na Baixa Idade Média após as Cruzadas, a Peste Negra e a Guerra dos 100 Anos, porém esse movimento imaginativo começa a surgir já com as invasões de escandinavos e mongóis tardios a partir dos séculos 9 e 10.

A morte, o medo da morte, seja pela fome, pela espada ou pelo ambiente, é extremamente presente na mentalidade medieval e feudal, ele se encontra nas novelas de cavalaria, nas canções de gesta e nos romans típicos do período. Isso pode ser sentido quando pegamos uma das heranças mais vivas da cultural medieval para posteridade: os contos de fada. Escritos, ou melhor compilados, a partir do século 19, principalmente pelos irmãos Jakob Ludwig Karl e Wilhelm Carl Grimm, os contos de fada nos mostra como a ideia do medo da morte se encontra plasmado no folclore europeu, e a raiz desse medo é justamente o Ocidente medieval.

Quadro Åsgårdsreien (A Caçada Selvagem de Odin, em tradução livre), do pintor noruguês Peter Nicolai Arbo, datado de 1872

A utilização da morte, ou melhor do medo da morte, como um elemento motriz do enredo e da narrativa por si só, em um universo de fantasia medieval, já colocaria Martin duma posição de destaque, porém a utilização do exército dos mortos coloca-o ainda mais em destaque. O medievalista francês Jacques Le Goff, um dos proponentes da história das mentalidades e grande estudioso do imaginário medieval, compilou em Heróis e Maravilhas da Idade Média (link para compra com desconto na Amazon aqui )  uma série de lendas, mitos e contos populares, admitindo que é possível se pensar tanto em cultura popular e literatura durante o Ocidente medieval, do período que ainda se encontram de alguma forma, mesmo que metamorfoseado, no nosso imaginário. E o que une, então, Martin e Le Goff?

A resposta é um dos personagens chaves do Carnaval: o Arlequim . O tema do folclore conhecido como Caçada Selvagem— Wild Hunt, em inglês, e Wilde Jagd, em alemão — é um dos temas mais conhecidos da mitologia ocidental: um bando de fantasmas caçadores em uma perseguição insana e sem fim. A Caçada Selvagem influenciou de Tolkien, durante o episódio onde Aragorn convoca os mortos em seu auxílio, até músicas country, a clássica Ghost Riders in the Sky (ouça versão cantada por Johnny Cash aqui). E onde mais encontramos um bando de fantasmas enlouquecidos em perseguição infinita? Justamente no Rei Prá-Lá-da-Muralha, chamado de Rei da Noite em Game of Thrones, os White Walkers e seu Exército dos Mortos. E onde entra Arlequim aqui? O Arlequim surge justamente como uma ressignificação desse líder de bando, porém seu nome foi se alterando, talvez muito por conta da oralidade presente na cultura medieval, e de líder de um bando de caçadores fantasmas passou a ser um dos líderes da folia de Momo.

Le Goff nos mostra no capítulo 13 do livro acima citado a história do Bando Hellequin, de como ele seria uma crítica à sociedade feudal, e ao mesmo uma história de lealdade e companheirismo entre um bando e seu chefe. Não há como saber se Martin conhecia ou não a história da caçada selvagem, ou se leu o texto de Le Goff, para se inspirar ao criar o seu exército dos mortos, mas ao fazê-lo mostra uma imaginação sensível sobre a mentalidade medieval, sobre o imaginário feudal, e o quanto certas imagens do passado ainda podem ter força para explicar o presente, afinal vivemos em uma época onde o medo atômico se arrefeceu um tanto quanto possível, porém o medo da morte pela mão de terroristas se faz presente e atuante.

A barbárie, o medo, a morte, são dos elementos mais pujantes e transversais na nossa história, seja aqui ou em Westeros, presentes na longa duração histórica e no nosso imaginário, a morte e o medo da morte se fazem presente tão forte hoje quanto eram nos idos dos séculos 10, 11 e 12, mostrando assim que somos muito mais próximos da mentalidade medieval do que gostaríamos de admitir.


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