Memória, Esquecimento e História

Black Mirror e a ressignificação da memória

No terceiro episódio da primeira temporada de Black Mirror, “The Entire History of You” — “Toda a sua História”, em tradução livre do inglês, em um título muito sugestivo — nos deparamos em um futuro onde é possível acessar sua memória através de um chip implantado atrás da sua orelha. Você visualiza toda sua memória através de um mini controle remoto. É possível vê-la sozinho ou compartilhá-la em uma televisão com outras pessoas. Nesse cenário, o protagonista desconfia que sua esposa o está traindo, e ele se utiliza de todo esse artifício para descobrir a verdade. Praticamente todas as pessoas da história possuem essa tecnologia, e a personagem que não o possui é questionada pelos outros personagens. Ou seja, não ter o dispositivo parece inviável. Você não precisa mais relatar suas histórias, você pode simplesmente mostrá-las. Se você não se lembrar de algo, você recorre ao dispositivo e revive toda a cena exatamente como ela foi vivenciada. A memória nunca esteve tão próxima e acessível.

Esse episódio traz inúmeros questionamentos, principalmente para nós que atuamos direta e indiretamente com a memória e sobre o que ela é. Tão facilmente acessível, a memória pode então nos trazer à luz dos verdadeiros acontecimentos. Ele passa a ser mais “real” (importante pensar se podemos chamá-lo assim também), pois conseguimos ver os fatos sem nenhuma espécie de filtro. Não nos baseamos mais pela oralidade ou pela escrita, mas pelo sentido mais valorizado pela crença humana: a visão. O personagem, ao desconfiar de tudo que sua esposa falava, utilizava das memórias para rebate-la. E quando não acreditava no que ela dizia, pedia para ela compartilhar das suas próprias memórias para saber se o que ela dizia era verdadeiro ou não. E aí ele encontrava as contradições nas falas e das memórias dela. O episódio te instiga a questionar o quão positivo é essa tecnologia. O quão mais fácil poderia ser para o historiador, investigador, advogado, médico, jornalista e inúmeras outras profissões. Mas devemos nos perguntar: seria, de fato, melhor?

Antes mesmo de respondermos isso, precisamos pensar o que é a memória e qual sua função. Elizabeth Jelin, em seu texto Los Trabajos de La Memoria, esclarece o papel da memória no sentido subjetivo e coletivo, como ela é marcada pelas rupturas e permanências. Um fator importante ligado a memória, que ela enfatiza, é papel o esquecimento. Afinal, a memória, como agente ativo do presente, trabalha com a experiência no passado para as expectativas criadas no futuro. Então ela é, evidentemente, selecionada. Coletivamente e individualmente identificamos a necessidade da preservação, de guardar datas, momentos e inclusive ideias. A memória não é o fato por si só. Ela tem uma construção individual e coletiva, e o historiador se baseia nessa construção para compreendê-la e fazer sua análise. O indivíduo é sujeito ativo na memória. Memórias ligadas a opressão, censura, muitas vezes, querem ser esquecidas, ou por aqueles que a cometeram, ou por aqueles que querem evitá-la, pois há quem acredite que não lembrar fará com que não cometamos os mesmos erros. No episódio nos deparamos com isso, as pessoas podem “excluir” certas memórias que não querem mais acessar.

Afinal, as memórias do dispositivo ainda são memórias? Sim, ela são. Elas estão inseridas em um contexto, ela são selecionadas e o esquecimento é uma ferramenta desse dispositivo. O que vemos é uma alteração da sua função. A memória, enquanto identidade do sujeito, perde sua subjetividade e deixa de ser questionada, passando a ser associada somente aos fatos. Então recorremos somente ao dispositivo para entender o desfecho: o fato dela estar mais presente cria um rompimento, fazendo com que ela deixe de ser afetiva. Nesse processo, não trabalhamos mais a lembrança e não re-vivemos mais o momento, mas apenas o revemos, há a perda da individualidade e a compreensão da mesma. O compartilhamento do acontecimento passa a ser visto do mesmo ângulo de quem o vivenciou, perdendo a importância do relato, a verdade baseia-se somente no audiovisual. Com certeza esse dispositivo transfigura todo cenário ao qual nós construímos e conhecemos, assim como mudaria nossa concepção de individual e coletivo, principalmente sobre o que é verdadeiro.


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