Avante Popolo!

Uma relação entre a popularização do futebol e o fortalecimento do movimento operário em São Paulo entre 1900 e 1930

1. Introdução

Uma das falas mais comuns ao tratarmos do futebol, pelo menos entre os seus apreciadores, é “não é apenas um jogo”. É uma bela frase de impacto, porém o que de fato ela significa? Entendemos que ela possui, basicamente, dois grandes significados; o primeiro, carregado de emoção e paixão, tenta nos transportar para uma dimensão maior do que o próprio jogo em si, ou seja, o futebol em sua esfera afetiva e emocional ultrapassa as fronteiras lógicas e racionais, sendo explicado além de suas regras próprias, porém com o aditivo desse sentimento inefável. Tente obter uma explicação semântica para um verdadeiro apreciador do esporte bretão sobre o que ele sente e terá uma tarefa digna a Sisifo. O segundo ponto de explicação que a frase citada acima pode assumir é que o futebol carrega em si explicações múltiplas que vão além das quatro linhas e do jogo pelo jogo, podemos entender muito do mundo e do tempo em que vivemos observando atentamente os sinais emanados pelos 90 minutos de uma partida de futebol, apenas à guisa de exemplo podemos indicar o fenômeno da globalização que o mundo passa a sofrer a partir dos anos 90 e a quebra de barreiras internacionais nos grandes mercados da bola; ou ainda podemos citar a relação entre o renascimento do nacionalismo carregado com tintas de um conservadorismo rasteiro no continente europeu e o aumento dos insultos xenófobos e racistas que pululam por toda Europa, com nítido destaque para os países da Europa Oriental, principalmente na Rússia e nos países que formavam a antiga Iugoslávia.

Partindo desse ponto semântico, esse que o futebol pode ser usado como ferramenta ou fonte para análises dentro dos campos das humanidades, essa presente monografia fará uma relação entre a popularização do esporte bretão em terras brasileiras — fenômeno que se dá logo nos primeiros anos da virada do século XIX para o XX, primeiramente entre as camadas mais abastadas da população, porém sendo disseminada para as camadas menos favorecidas da sociedade, principalmente entre os negros recém-saídos da maior mácula da nossa história, os quase quatro séculos de escravidão a qual submetemos os cativos das costas africanas, há quem diga que a popularização do esporte entre os negros brasileiros foi o grande responsável na separação final entre o futebol e o rúgbi, adicionando o elemento do drible e do talento individual ao jogo, até meados da década de 1890 o futebol era praticamente jogado em linhas em ondas de ataque e defesa, o drible acaba por transformar o futebol em um esporte transversal o jogo, trazendo o elemento surpresa para sua dinâmica — e o surgimento e consolidação do movimento operário, tendo como agentes dois elementos em comum: os já citados negros marginalizados na vida urbana pela falta de inclusão desses na vida social brasileira pós o sete de abril de 1888, e a entrada de uma massa de imigrantes europeus, sobretudo de italianos e espanhóis, que vieram para o Brasil, primeiramente, como forma de substituição da força de trabalha negra escravizada e depois como mão-de-obra barata para a nossa incipiente indústria.

Nosso recorte se dará entre a virada do século XIX e o ano de 1922, ano de fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), acreditamos que assim conseguimos atravessar um bom período de nossa história onde o futebol, assim como o samba e a capoeira, é um dos elementos primeiros da nossa nova formação de identidade social pós-proclamação da república, na chamada Belle Époque. É preciso salientar que por questões de rigor acadêmico nossa análise partirá e ensejará apenas a cidade de São Paulo, por alguns motivos categóricos notórios: primeiro por conta da influência dos imigrantes na vida política de São Paulo, segundo pela concentração do movimento operário na então maior cidade industrial do país, e, terceiro, por ser em terras de Anchieta que ocorre o fenômeno que estabelece a relação entre futebol e as práticas políticas operárias: o advento dos chamados times operários.

Diferentemente dos times de futebol do Rio de Janeiro, para pegarmos apenas um exemplo, que tiveram suas origens em outros esportes, mais notoriamente o remo, entre os chamados times grandes da capital carioca o Clube de Regatas do Flamengo, o Botafogo de Futebol e Regatas e o Clube de Regatas Vasco nasceram como um clube de regatas, o Fluminense Football Club é o único que não nasce nas raias e sim como uma dissidência do Flamengo, sendo um dos clubes de futebol mais antigos do Brasil, os clubes de São Paulo, em sua grande maioria, têm suas origens no chão de fábrica. A Sociedade Esportiva Palmeiras, o Sport Clube Corinthians Paulista e o Clube Atlético Juventus são notoriamente times que foram fundados por operários imigrantes. Na urbe os dois únicos times que fogem à origem operária são o São Paulo Futebol Clube e a Associação Portuguesa de Desportos, o primeiro tem suas origens em clubes de colônia, imigrantes aburguesados, que acabam por se fundir, e o segundo na comunidade portuguesa, notoriamente pequena comerciante, da cidade.

Dessa forma se faz natural que qualquer história paulistana que busque suas identidades culturais, seus fenômenos demográficos, suas relações políticas, sua sociologia do trabalho, no período que se estende do governo Prudente de Morais até a Revolução de 1930 precisa, quase que obrigatoriamente, a passar pelo futebol e utilizá-lo como fenômeno de massa cujos significados não estão apenas intrínsecos apenas em si, mas que é ao mesmo tempo reflexo e espelho, tanto em termos sociais, econômicos, políticos e antropológicos, da sociedade na qual está inserido, pois, como sabemos,não é apenas um jogo”.


2. Um panorama das relações entre Futebol e práticas políticas

Foto de protesto anti-Copa de 2014 na Avendia Paulista

O esporte como um todo, mas especialmente o futebol, popular no Brasil desde sua difusão, foi percebido pela classe política e pelo capital como uma forma de controle social e propaganda política. Como controle da população podemos entender como uma forma de aproximação com o povo e exibição de bem feitorias criadas pela casta dominante no poder e de propaganda político-ideológico, apresentando um país idealizado, reforçando a presença político-partidária e das empresas na sociedade, podemos citar o velho jargão dos tempos do AI-5, “onde a ARENA (partido referendador do regime) vai mal, um time no nacional”, como exemplo dessa relação entre propaganda política e o futebol.

Nos dias atuais, temos um futebol bem organizado e estruturado, bem diferente do período recortado para a nossa análise onde se imperava o amadorismo e o romantismo, com clubes profissionais, além daqueles ainda amadores, que contam com uma infraestrutura que regulamenta e organiza a prática profissional do esporte, a arbitragem e a conduta das torcidas dentro e fora das arquibancadas e até em nível judiciário, cujo tribunal dedicado, o Tribunal de Justiça Desportiva e suas várias instâncias, é conhecido por sua celeridade e presteza. Em 2016, segundo relatório publicado pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF), constavam registrados no Brasil 776 clubes profissionais e 435 clubes amadores, sem contar os times formados em bairros que realizam jogos informais, o famoso futebol de várzea, e os praticantes do esporte em todo o país. Toda essa organização burocrática pode ser historicizada através de um longo processo histórico, político e social, onde suas origens podem ser traçadas até a famigerada política dos governadores de Campos Salles, foi nesse época, e depois no Estado Novo varguista, que surgem e se fortalecem as federações estaduais do esporte em substituição das ligas organizadas diretamente pelos clubes, mais um exemplo do uso político do esporte bretão pelas forças políticas dominantes, nos mostrando que os interesses vigentes ao ludopédio vão muito além da simples prática esportiva.

Diversos estádios foram construídos com a intenção de mostrar à população que obras estavam sendo realizadas, com o intuito do Estado se mostrar atuante e vigoroso, em grande medida influenciando a economia e gerando empregos, mas para acima de tudo reforçar sobre a população seu controle e influência. Podemos exemplificar essa prática política através do estádio de São Januário, de propriedade do Vasco da Gama, inaugurado em 21 de abril de 1927, pelo governo Vargas para grandes manifestações cívicas e comícios políticos, como a promulgação da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), a instituição de um salário-mínimo para o trabalhador e as festividades anuais do 7 de setembro. Outro caso que podemos utilizar como exemplo do uso político do esporte foi em 1921 quando o então presidente Epitácio Pessoa exigiu a formação de um time formado por jogadores brancos, a ausência de negros em times profissionais de futebol era uma prática vigente durante a República Velha, prática, aliás, que se alastrou até a década de 1970, quando o Coritiba Foot Ball Club derruba o veto de possuir jogadores negros profissionais em seu time, o nos revela como um reflexo do racismo em terras brasileiras, para representar o país no campeonato sul-americano como uma forma de retratar a sociedade e a população brasileira, o que é, no mínimo, incoerente e irreal. Sobre a questão do negro no futebol no Brasil recomenda-se a leitura do clássico “O negro no futebol”, de autoria do jornalista Mário Filho, que batiza o estádio brasileiro por excelência, o Maracanã, obra que foi apreciada à época de sua publicação por nomes como Gilberto Freyre e José Lins do Rego.


3. Como o futebol ganhou o Brasil

Foto da primeira partida da Seleção Brasileira, contra o Exeter Football Club, no Estádio das Laranjeiras, a Seleção Canarinho ganhou essa partida por 2×0, datada de 21 de julho de 1914

A história contada sobre a chegada do futebol no Brasil é bem conhecida e muito reproduzida pela imprensa. Wilson Roberto Gambeta, pesquisador associado ao LUDENS (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas) da Universidade de São Paulo (USP), em sua tese de doutorado, posteriormente publicada editorialmente, Rolando a Bola, problematiza o início do futebol moderno no Brasil. Filho de britânicos pertencentes a elite econômica paulistana, Charles Miller é atualmente considerado, apesar do longo debate historiográfico acerca do tema a presente monografia não tem a intenção de adentrar na seara desse debate, como o pioneiro do futebol no Brasil, pois ao retornar de um período de estudos na Inglaterra traz consigo as regras e equipamento para praticar o esporte. A importação das regras em 1894 da Inglaterra e sua difusão, primeiro entre as elites, famílias ricas e de classes médias é uma construção bem-aceita tanto pela academia quanto pela mídia especializada, conhecimento que já penetrou a mentalidade e a memória popular, basta ter em mente que a praça em frente ao Estádio Municipal do Pacaembu, um dos mais antigos e principais estádios na cidade de São Paulo, é batizada em nome de Charles Miller.

Bem difundido na Inglaterra, tido como país onde o esporte se originou na sua forma moderna e com os atuais conjuntos de regras, a origem em si do futebol é outro longo debate historiográfico onde são apontados fenômenos que podem se rastreados desde a Idade Média até as civilizações maias e astecas, o futebol se populariza no nosso país primeiro entre as elites, geralmente formadas por grandes proprietários de terra e industriais, além de altos funcionários de empresas multinacionais, esses geralmente alemães e ingleses, principalmente devido as novas teorias europeias sobre a necessidade de se manter alguma atividade física, além do próprio surgimento do conceito de esporte em substituição ao conceito medieval do jogo. Por conta de predominância das elites financeiras dentro do esporte, se mantém as parcelas mais pobres da sociedade, principalmente os trabalhadores operários que ainda lutam por uma jornada de trabalho mais justa, digna e humana, às margens da prática futebolística, e então notamos o chamado “jeitinho brasileiro” se manifestando: alijados e muitas vezes proibidos de atuarem como praticantes, os mais desfavorecidos nos grandes centros urbanos, notoriamente em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre, onde o ludopédio encontra fértil terreno para sua disseminação e popularização, acabam por improvisar a prática esportiva, se utilizando desde as bolas de futebol feitas com meias e até os campos, que variam de ruas até os terrenos baldios, criando um fenômeno tipicamente brasileiro: o futebol de várzea, que se diferencia, e muito, de fenômeno similar britânico, o casual football, pois nas Ilhas Britânicas mesmo esse futebol, praticado aos fins de semana por esquadrões completamente amadores, ainda possui um verniz de organização burocrática e estatal. Dessa forma, as classes baixas urbanas acabam por se apropriam do esporte, ressignificam e começam a praticá-lo, é nesse momento que ocorre a explosão da popularidade do esporte. É notório dizer que há também uma mudança em relação aos olhos da burguesia sobre a prática esportiva ao perceber que o operariado, formado basicamente por inglês, esses sendo primariamente os grandes interessados no esporte nas classes trabalhadoras, não a toa os primeiros clubes de futebol em São Paulo são formados por britânicos, a sabe o Clube Atlético Paulistano e o São Paulo Atlético Clube, o SPAC, alemães, italianos e espanhóis, tendo minimamente uma recreação acabava por se tornar mais saudável e produtivo, o que, logicamente, incrementa seus lucros. Podemos notar então uma nítida e sólida relação entre a industrialização, o surgimento do proletário fabril e a popularização do futebol em nosso processo histórico.

Apesar de rapidamente difundido pelas classes trabalhadoras, inicialmente o operariado enfrenta uma forte oposição de anarquistas e comunistas em relação ao futebol, analogamente ao ocorrido durante a Ditadura Militar quando militantes políticos contrários ao regime negavam a importância sociológica e política do futebol em nossa sociedade, que rejeitavam a prática do esporte por entenderem, equivocadamente, que a origem do suporte se dava exclusivamente nas elites burguesas encampadas pelo discurso imperialistas, além de desviar o foco da formação intelectual e ideológica para a mera prática física, o que na opinião daqueles acabava por alienar o proletariado condenando, ad eternum, à dominação política e econômica. A opinião geral dos segmentos à esquerda do espectro político acaba por mudar e aceitar o futebol como fenômeno popular de massas, como um patrimônio imaterial dos trabalhadores, conforme os operários se organizavam em clubes e agremiações esportivas, ou seja, em um terreno fértil para a divulgação da ideologia marxista e anarquista pois o clima que dominava esses espaços era de aceitação e politização.


4. Origene Operare: a formação do movimento operário em São Paulo

Torcedores do Juventus exibem uma faixa exaltando as suas origens operárias na Rua Javari

Fortalecido entre os anos 1917 e 1920, o movimento operário em São Paulo foi amplamente divulgado e assimilado pelos clubes de futebol da capital, principalmente aqueles de origem popular e imigrante, notoriamente os italianos e espanhóis que trabalhavam nas fábricas do Brás, da Moóca e da Barra Funda, como foi magistralmente retratado por Antônio Alcântara Machado em Brás, Bixiga e Barra Funda, romance de 1927.

Por questões línguisticas, a maioria dos imigrantes era alfabetizada em seu idioma nativo porém completamente analfabeta em português, muitos dos operários acabavam por se informar através do Fanfulla, um jornal escrito em italiano que circulava em São Paulo durante os anos de 1910 e 1920. O Fanfulla ainda sobrevive como jornal, porém em volume bem menor e apenas como plataforma online. Foi nesse jornal que agosto de 1914 foi vinculado um anúncio que seria o pontapé da fundação do Palestra Itália, assim como também foi nesse jornal que em 1917 os operários foram convocados para a primeira greve geral da história do país.

Podemos traçar as origens do movimento operário primeiro com a disseminação das ideias marxistas e anarquistas pelos próprios imigrantes, uma pequena parte desses tinham educação de ordem superior e com acesso as teses de Karl Marx, Friederich Engels, Mikhail Bakhtin, Errico Malatesta e Vladmir Lenin, o recrudescimento da repressão estatal contra os operários mobilizados e, assim como veremos na seção dedicada a fundação do Partido Comunista do Brasil, a vitória bolchevique na Revolução Russa de 1917.

Podemos traçar a origem do movimento operário em São Paulo junto com o próprio surgimento da classe operária em São Paulo, ou seja, há uma relação de significado e representatividade entre ambos. Sem a classe operária, não haveria movimento operário, e sem movimento operário a classe operária não teria representatividade e seria facilmente dominada e, ainda mais, explorada pela burguesia industrial paulistana.

Um dos principais pontos de flexão para o surgimento do movimento operário em São Paulo foia Greve Geral de 1917. Movimento mobilizado pelos sindicatos e união de trabalhadores, a Greve Geral de 1917 foi o estopim para as grandes lutas proletárias no país. Entre suas principais pautas podemos colocar a regularização da jornada de trabalho, a regulamentação dos direitos e deveres trabalhistas, condições de trabalho dignas, entre diversos outros pontos.

É notório entre o movimento operário a participação ativa de diversos quadros ligados ao futebol, principalmente através dos chamados operários-jogadores, cuja definição veremos logo abaixo, que se mobilizaram para lutar pelos direitos básicos dos trabalhadores urbanos em São Paulo. Percebe-se, então, seja pela mídia imigrante e pela participação de quadros ligados ao futebol que o ludopédio possui enorme presença e protagonismo na formação do movimento operário e na representação dos trabalhadores no jogo político.


5. Um olhar sob o futebol operário

Jovens torcedores do time inglês West Ham ocupam a entrada do Upton Park, foto datada de 1960

Com a popularização do futebol, além do fomento de sua prática pela burguesia e pelo Estado, interesse do operariado pelo esporte é crescente e vertiginoso, em pouco tempo, em 1910 é fundado o Corinthians, em 1914, o Palestra Itália, que em 1944 é obrigado a trocar de nome por conta da aliança do Brasil com os Aliados durante a Segunda Guerra Mundial para Palmeiras, e em 1918 é fundado o Juventus, notamos a disseminação de clubes operários em São Paulo. Necessitando de equipamentos e espaço para a prática do futebol, os operários recorriam aos diretores das fábricas, que percebendo que através do esporte poderiam ganhar a lealdade dos funcionários, controlar suas práticas no tempo livre e propagandear o seu nome e marca, logo se começou a legitimar os clubes de futebol dentro das fábricas, seja através de subsidios materiais, fornecimento de equipamento e de espaços para prática, nesse quesito é notório a aquisição do Parque Antártica pelo Palestra Itália através de uma doação dos Matarrazzo para o clube, ou a construção do estádio da Rua Javari pela família Crespi, ou através da concessão de privilégios, como uma segunda remuneração ou até a suspensão dos trabalhos dentro da fábrica, aqui cabe dizer que o futebol tinha como modelo de prática o amadorismo, era vedado o profissionalismo, por conta disso, esportivamente, os times alinhados ao proletariado acabam por ganhar vigor por contarem com “jogadores amadores” que podiam se dedicar quase que exclusivamente ao esporte, para os operários-jogadores, além de outros benefícios que visavam aproveitar a prática do esporte para benefício das empresas comerciais.

Muitos desses operários se organizavam em clubes, que quase sempre incorporavam no título o nome da empresa, que por sua vez incorporava o clube como um departamento próprio. Foram os operários que praticavam o esporte apenas por prazer, no seu tempo livre, os chamados operários-jogadores e os carreiristas, que compunham os grupos de jogadores das fábricas. O operário-jogador tinha como principal ocupação seu trabalho na fábrica, buscando nos times os privilégios trabalhistas e os lucros financeiros. Os carreiristas, eram aqueles que buscavam ganhar a vida jogando futebol, com a segurança de um emprego na fábrica. Contando com privilégios econômicos derivados do futebol, as fábricas, além de fornecerem equipamentos e o espaço para prática esportiva, seja em treinos ou jogos, acabavam por alocar os operários vitoriosos em campo para espaços de trabalho diferenciados, onde se exigia menos esforço físico, liberavam do expediente de trabalho para treinos e jogos sem que fossem descontados dos salários esses períodos, além de distribuir prêmios conforme o desempenho dos times, que por sua vez acabava por divulgar o nome da empresa durante os eventos esportivos. Essa prática, além de cooptar o trabalhador e criar uma ilusão de ventura e fartura, era altamente vantajosa para as fábricas, pois a prática do esporte acabava por estimular a disciplina, o futebol é um esporte dependente da tática e dos jogos mentais para a sua dominação esportiva, e o trabalho em equipe, além de condicionar fisicamente os operários, ou seja, dando a eles um substrato para o incremento das atividades produtivas que demandavam o uso da aptidão física, além de formar e transmitir uma imagem de uma empresa que atende as demandas dos funcionários de forma “pacífica”, vivíamos um tempo onde problema social era entendido como problema policial, ou seja, qualquer forma de demanda proletária atendida que não fosse conquistada através do enfrentamento, muitas vezes física, era entendido como pacífico, mesmo que fosse uma forma velada de dominação político-econômica.

Os clubes fabris trazem ao operário uma identidade, a sensação de pertencimento a um grupo e uma coesão social, e embora vistos em um primeiro momento como ferramentas de manipulação por parte dos anarquistas e dos comunistas, além de contribuíam para formar uma imagem positiva dos operários, devido à boa organização dos eventos esportivos organizados e a popularidade galopante que assumia o esporte, que era assistido por uma plateia cada vez mais maior e acabou por se tornar um dos meios pelo qual os operários criam uma união classista pautada pelo senso de comunidade, pela fraternidade e de consciência.


6. Bandiera rossa lo triunferá!: a Fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB)

Fundadores do PCB em foto de 1922

Influenciados pelos revolucionários russos de 1917, um grupo de trabalhadores funda, em Niterói, no dia 25 de março de 1922, o Partido Comunista do Brasil, o PCB, partido político mais antigo ainda em atividade no país. Sendo criado por conta dos movimentos anarco-sindicais, por intelectuais marxistas e por representantes do movimento operário brasileiro, o PCB vai se tornar o primeiro partido declaradamente leninista-marxista do Brasil.

Por conta de sua origem proletária, o Partidão, como é conhecido o PCB, acaba por aglutinar forças e agentes até então dispersos em um grande guarda-chuva institucional. O advento do PCB juntamente a, inevitável, profissionalização do futebol, faz com que os clubes operários, antigas tribunas cativas para a disseminação e irradiação da luta operária. Podemos notar, ao menos até a Revolução de 1930, que a relação entre o proletariado e os clubes de origem operária ainda se mantém, mesmo que de forma velada e já combalida, podemos citar como exemplo o famoso jogo entre Palmeiras e Corinthians, com vitória do alviverde de Parque Antártica por 2 a 1, em 1945 cuja bilheteria fora doada para que o PCB pudesse ser refundado.

Como partido formador de quadros, o PCB acaba por ocupar um espaço que chegou a ser ocupado pelos clubes esportivos, além do que como agente político ele acaba por fomentar o surgimento de periódicos e seminários que acabam por pautar e balizar a representatividade das classes trabalhadores no Brasil a partir de então. Não à toa que é o PCB uma das primeiras associações cassadas e postas na ilegalidade, por onde só sairia em 1945, durante o Estado Novo. É importante lembrar que o Brasil de 1922 ainda vivia uma transição, que apenas foi se consolidar em meados da década de 1950, entre a vida agrária e a vida urbana, os grandes proprietários rurais ainda detinha uma fatia considerável de poder ante os industriais urbanos, por exemplo, e o PCB surge como força que se propunha a unir os trabalhos do chão da fábrica e do campo, é simbólica a escolha da união entre a foice (campo) e martelo (fábrica) como ícone máximo de sua representação. O mundo do campo estava alijado do futebol, afinal esse, assim como o próprio conceito de esporte em geral, é um fenômeno quase que exclusivamente urbano, o que acabava por diminuir as potencialidades representativa entre os clubes operários e a massa trabalhadora do Brasil de então.

Portanto ao olharmos retroativamente percebemos que a própria evolução do esporte e das estruturas político-ideológicas acabaram por apartar, e não separar definitivamente, os futebol, através dos clubes operários, tornando ambos caminhos distintos mas de forma alguma separados.


7. Conclusão

Com tudo o exposto ao longo dessa monografia podemos chegar a um par de conclusões sobre as relações entre práticas políticas e a disseminação do futebol entre as classes trabalhadoras de São Paulo entre as décadas de 1910 e 1920. A primeira, e mais óbvia, é que o esporte, originalmente ligado às elites burguesas da Belle Époque, acaba por se disseminar rapidamente entre as classes menos favorecidas da sociedade, principalmente entre os negros libertos, ou filhos de escravos libertos, e a massa de imigrantes europeus, muito por conta de se tratar de uma forma de afirmação e organização política perante essas mesmas elites. A segunda, também escancarada, é que ao longo de nossa história o esporte bretão foi amplamente utilizado como ferramenta política de manipulação e cooptação das massas pelas elites, seja como distração e alienação, crítica essa feita pelos marxistas mais radicais, seja como forma de opressão e opulência. Há ainda que exponha a relação entre a organização proletária em, primeiramente, clubes de cunho classista que acabam por se tornar espaços de politização e de formação ideológica e política, o que acabou por influenciar na própria formação e disseminação do movimento operário brasileiro, culminando com a formação do Partido Comunista Brasileiro em 1922. Percebemos, então, que as ligações entre a representatividade operária, classe surgida do amálgama social entre dois segmentos oprimidos, os negros e os imigrantes, dentro de campo e das tribunas políticas, é um fenômeno concomitante e intrínsecos entre si, sendo um causa e consequência do outro, revelando assim uma teia de relações históricas, sociais, econômicas e políticas que se complemente e se retroalimenta.


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